segunda-feira, 30 de junho de 2008

PISA2006, de novo

Em função de algumas críticas que a análise dos dados do PISA suscitou - em particular a ideia de estava a comparar dados dos alunos do 10.º ano com as médias globais dos outros países - mostro um quadro que deve dissipiar as dúvidas.
O meu post inicial foi sobre os dados do PISA2006 sobre matemática, porque a discussão pública era sobre este tema. O quadro que se segue é sobre a literacia científica (média = 474) porque não tenho aqui à mão desagregados os dados sobre a matemática (média = 466) que me permitam construir um quadro equivalente, mas o exercício é o mesmo, e as conclusões também.
Já tinha adiantado alguns destes dados na discussão que decorreu aqui. Agora ficam os dados completos para um conjunto de 32 países - uma coluna de cada vez, da esquerda para a direita (clickar para aumentar a imagem):



- o score global em cada país;
- a % de alunos no ano modal em cada país;
- o score do ano modal de cada país;
- a diferença entre o score do ano modal e o score global em cada país;
- o ranking original (i.e., construído a partir do score global)
- o novo ranking, construído a partir do score do ano modal;
- a % de alunos 'muito atrasados', que são os alunos atrasados mais do que 1 ano de escolaridade em relação ao ano modal (nos países cujo ano modal é o 10.º, somam-se os alunos no 7.º e 8.º anos; nos países cujo ano modal é o 9.º, contam-se os alunos do 7.º ano; nos países cujo ano modal é o 11.º, somam-se os alunos no 7.º, 8.º, e 9.º anos).
- o coeficiente de atraso, calculado a partir da % dos alunos ‘muito atrasados’ sobre a % dos alunos no ano modal.

Os dados mais relevantes de Portugal estão a vermelho. A amarelo estão elementos relativos a alguns países que, ainda que à distância, se aproximam do nosso comportamento.

Vemos que:
- Portugal é o país onde a diferença entre o score modal e score global é a maior: 54 valores (curiosamente, no caso da matemática, a diferença entre o score modal e score global é idêntico = 520 - 466).
- Esta diferença resulta do enorme peso dos alunos 'muito atrasados' (19,7%) e do elevadíssimo valor do coeficiente de atraso (38,9%).
- Reconstruído o ranking a partir dos alunos no ano modal, Portugal passa de 29.º do conjunto de 32 países para 11.º (com o mesmo score da Austrália e da Espanha). Nenhum outro país ganha (ou perde) tantos lugares na passagem de um ranking para o outro.

De uma forma um bocadinho pomposa: os nossos alunos no ano modal estão à porta do top 10 mundial, quando comparados com os alunos dos outros países nas mesmas condições. Não são os melhores do mundo, mas, sim, estão entre os melhores.

Chamada de atenção

Este dado referido num post anterior - que indica o baixíssimo nível de escolarização dos empregadores portugueses - é, quanto a mim, um dos problemas estruturais da nossa economia que tem sido muito pouco referido, sendo um dos elementos mais bloqueadores relativamente à regeneração e ao aumento do emprego disponível. Também nesta área parece haver uma forte reprodução. Não tenho aqui nenhum gráfico à mão que o demonstre, mas parece-me inegável que o défice de qualificação dos nossos empresários tem um efeito reprodutor sobre o perfil de baixa qualificação dominante nos trabalhadores do sector privado. Um modelo empresarial que recorre generalizadamente a mão-de-obra barata pouco qualificada - que demonstra grande incapacidade em inovar usando algum capital de risco, e que tem grande dificuldade em integrar e rentabilizar novas tecnologias – é revelador de uma realidade que teima em perpetuar-se. Considerar que esta situação poderá inverter-se tendo por base fundamentalmente a via da flexibilidade que incide somente sobre o factor trabalho (e respectivas relações laborais), representa, do meu ponto de vista, uma certa ingenuidade analítica. A reconversão (ou o que se lhe quiser chamar) do tecido empresarial tem de ser considerada em paralelo com a questão laboral. Estas, para além de não serem independentes, estão, em Portugal, imbricadas de uma forma que dificilmente poderá ser comparada (em linearidade) com outro país europeu. Considerando a ‘especificidade portuguesa’, chamo a atenção para o seguinte: não é nada líquido que maior flexibilidade laboral possa significar, a prazo, maior criação de emprego (isto se a composição do tecido empresarial não mudar estruturalmente).

domingo, 29 de junho de 2008

Estado, profissionais e igualdade

O Renato introduziu há dias o conceito de "embeddedness". Embora este tenha sido desenvolvido e aplicado inicialmente no âmbito da política industrial, o Renato pretende alargá-lo a áreas que mais tradicionalmente podemos considerar de política social ou próximas (neste caso, a educação). Esta parece-me uma boa ideia. Mas antes de o ser como fertilizante político, é-o talvez como instrumento para perceber como é dificil o processo de "embeddedness" ocorrer com eficácia.

O Renato falou da educação, mas podia ter falado da saúde. Ou da justiça. Estes são serviços públicos estruturantes de qualquer política de igualdade de oportunidades. São também serviços onde é muito fácil a energia política e o investimento económico perder-se pelo meio da dificuldade em alinhar o objectivo do Estado - que estes serviços sejam fornecidos com níveis elevados de equidade e eficiência - com os interesses dos profissionais.

O Estado aqui tem duas hipóteses limite: ou entrega aos grupos profissionais respectivos (professores, médicos, magistrados) a condução das suas próprias práticas e a sua avaliação; ou tenta tudo controlar de forma potencialmente invasiva para garantir que o que é feito pelos profissionais é-o de acordo com os objectivos políticos definidos por um programa de governo sufragado pela população. Os dois casos são perigosos. No primeiro é grande o risco do Estado ser capturado pelos interesses profissionais, e no segundo é grande o risco do Estado invadir excessivamente o espaço que os profissionais têm como seu.

Isto para dizer o quê? Que qualquer política de igualdade de oportunidades depende, em ampla medida, de um alinhamento de interesses entre o Estado (o 'principal') e os profissionais (os 'agents'), e que as melhores medidas podem falhar se os profissionais tiverem um entendimento do objectivo do seu métier diferentes daquele que o Estado tem. Aqui, a ideologia profissional é um pau de dois bicos: se, por um lado, garante mínimos de qualidade e de adesão a uma ética que resultam de uma regulação autónoma de um corpo de experts, por outro não há nenhuma garantia que os profissionais estejam tão interessados em respeitar os objectivos políticos de um governo, em particular se estes passarem pela luta contra as desigualdades de oportunidades, de acesso, ou de resultados (diferenças entre conceitos que não aprofundo aqui).

Regularmente, quando se afirma uma coisa destas, surge imediatamente a suspeita de que se está a acusar os profissionais de serem egoístas - pior, de serem naturalmente, egoístas, como se de uma "antropologia neo-liberal" se tratasse. Mas esta acusação é extraordinariamente grosseira e passa ao lado da discussão. Há várias razões pelas quais os profissionais podem não concordar ou, mesmo concordando em abstracto, não consigam levar a cabo as orientações políticas. Pode haver discordâncias ideológicas: como garantir que todos os professores concordam com uma escola de massas, isto é, para todas as crianças? Como garantir que os médicos concordam com a existência de um serviço nacional de saúde universal e que não descrimine ninguém? Pode haver problemas organizacionais: como garantir que os recursos postos à disposição dos profissionais são bem usados? Como garantir que médicos ou professores dêem tudo o que têm para dar no público e não façam o serviço "a meias", usando o sector privado para garantir os níveis de qualidade que podiam e deviam ser garantidos através do sistema público? Pode haver haver problemas de motivação: para quê tentar ensinar crianças que "não aprendem"? E para quê tratar indivíduos irresponsáveis que não sabem "tomar conta" de si e da sua saúde?

Quanto maior a distância ideológica, a ineficiência organizacional e/ou a o défice de motivação, maior a tendência para o Estado se ver forçado a aumentar a supervisão do trabalho destes profissionais, e maior o potencial descontentamento destes ao sentirem que a sua autonomia está a ser atacada e que as suas tarefas estão, com o maior controle público, cada vez mais, dirão, neo-taylorizadas. E quanto maior o descontentamento destes, maior a "chantagem" pública destes agentes. Os discursos na saúde de que "assim não podemos garantir a qualidade dos tratamentos" ou, na educação, que "assim só estamos a formar crianças que cada vez sabem menos", são endémicos. Fazem parte da "chantagem" cujo rigor empírico ninguém pode muito bem garantir, seja porque é dificil calcular condições mínimas de qualidade, seja porque é complicado fazer comparações entre períodos históricos (embora na educação não seja bem assim - tema para outro post).

A verdade é que, ceteris paribus, é sempre mais complicado trabalhar em sistemas que servem todos do que em sistemas que servem uma minoria: é mais fácil e interessante ensinar alunos com vivos e interesse em aprender do que miúdos em escolas TEIP, e é mais conveniente e estimulante tratar pacientes cultos e qualificados, trabalhar em especialidades de ponta, e/ou exercer medicina em Lisboa do que em Montemor-o-Velho. Se assim não fosse, teríamos os melhores professores nas escolas mais difíceis, e não haveria tanta dificuldade em garantir a formação de médicos de clínica geral e em colocá-los em locais longe dos centros urbanos. Não é preciso imputar nenhum egoísmo aos profissionais - basta não ser ingénuo e achar que o ethos de serviço público e da luta contra as desigualdades está no código genético das profissões. Nunca me esqueço que, na sociologia da profissões, o norte-americano Talcott Parsons achava, nas décadas de 50 e 60 do século passado, que o altruísmo e o serviço ao público faziam parte dos traços característicos das profissões liberais, de que a medicina era um dos exemplos acabados - isto, recorde-se, num país onde os médicos, pela voz da American Medical Association, sempre foram um dos maiores inimigos da criação de um sistema público e universal de saúde, precisamente porque isso iria limitar a sua margem de autonomia (a começar, digo eu, pela sua 'autonomia' para ganhar muito dinheiro). A verdade é que os profissionais estão sempre próximos de ver o serviço que prestam reduzido a um mero 'servilismo'. E aqui o profissionalismo - e, em particular, o 'orgulho profissional' - pode ser um perigoso inimigo do (serviço) público, e das suas necessidades e exigências legítimas.

Este é um problema sério, porque a qualidade e a universalidade dos serviços públicos dependem não apenas do investimento público em recursos materiais e humanos, mas também da capacidade dos profissionais gerirem os recursos postos à sua disposição de forma mais racional - e não simplesmente pedir mais dinheiro - e da motivação e dedicação dos profissionais, cuja maximização não pode estar garantida só porque os mesmos dizem que "fazem tudo pelos seus alunos/doentes". Se assim fosse, talvez os sistemas públicos não precisassem tantas vezes da ajuda do sector privado para reduzir as filas de espera na saúde ou de tantas explicações "por fora" para ajudar os alunos.

Resumindo: a luta contra a igualdade de oportunidades/acesso/resultados falha muitas vezes não por culpa (exclusiva) do Estado, mas porque a relação entre o Estado e os profissionais é complicada - a tal "embeddedness" é, afinal, mais difícil do que pode parecer à primeira vista -, e porque estes não se revêem necessariamente nos objectivos igualitaristas das políticas públicas.

sábado, 28 de junho de 2008

Criação de emprego e reforma laboral II

Na linha do meu post anterior, apresento mais dados (retirados deste livro) que mostram que a legislação de protecção do emprego (LPE) pode ter um efeito negativo no emprego. O quadro em baixo correlaciona o crescimento do emprego em serviços ao consumidor entre 1979 e 1995 para um conjunto de 14 países (Portugal não está incluído) e a rigidez/flexibilidade da legislação de protecção do emprego.

Naturalmente, pode haver efeitos escondidos de outras variáveis. Nas regressões realizadas pela autora, no entanto, a legislação de protecção do emprego parece ter um efeito explicativo importante.
Ao mesmo tempo, e porque uma variável nunca explica tudo, muito do efeito negativo que a LPE pode causar num dado país pode ser contrabalançado por outras variáveis que favorecem a criação de emprego, como a existência de:
- mecanismos eficazes de concertação entre parceiros sociais para acertar salários;
- níveis elevados de sindicalização;
- um stock de população altamente qualificada;
- capacidade para atrair investimento internacional;
- capacidade para competir nos mercados internacionais.

Infelizmente, não me parece que qualquer destas variáveis possa compensar, em Portugal, o efeito da rigidez oficial da nossa LPE na criação de emprego (como pode acontecer noutros países). A concertação social no geral, e os dispositivos de negociação colectiva em particular, são limitados; o nível de sindicalização é, no sector privado, fraco; a nossa população apresenta défices altos de qualificação; a nossa capacidade de atrair investimento internacional pode ter sofrido um impacto importante com o alargamento da UE a Leste, onde as condições fiscais e a qualificação dos trabalhadores são mais favoráveis; e a nossa capacidade para competir nos mercados internacionais não me parece que possa ter aumentado em função do factor anterior (i.e., a abertura a Leste (e basta olhar para este gráfico e começar a ver a dimensão do problema)) e de outros como, por exemplo, a maior integração da China na economia global, que nos afecta mais do que afecta, por exemplo, uma Suécia, uma Alemanha ou uma França.

Neste cenário, o que pode fazer um governo em tempos de pouca margem de manobra macroeconómica? Pode, claro, tentar mudar algumas das condições que fazem parte da lista de cima. Mas é forçoso reconhecer os seus limites, dado que em alguns casos elas dependem de variáveis internacionais, e noutras dependem da coordenação entre parceiros sociais que, mesmo que funcione pontualmente, está longe de ser transversal, profunda e de estar institucionalizada - e o governo não pode obrigar ninguém a chegar a acordos eficazes se ninguém estiver interessado em fazê-lo. Por fim, o aumento do stock de qualificações e competências da população está a acontecer, mas - dada a distância de partida que nos separa da Europa - será sempre demorado.

Onde outras variáveis que não estão listadas em cima podem ter, pela acção governamental, uma importância positiva na criação de emprego - como o esforço na expansão das políticas activas de emprego, ou a criação de condições que incentivam a a entrada das mulheres no mundo do trabalho (como as relativas à existência de creches ou à licença de maternidade) - tem havido avanços positivos, mas o seu impacto pode ser lento (no caso das primeiras) ou relativamente reduzido (das segundas).

As diferentes alavancas do policy mix ao alcance dos decisores políticos não parecem, por isso, fornecer nenhuma solução eficaz e rápida. Claro, podia-se mexer na dimensão fiscal - descer as contribuições pagas por empregadores à segurança social, por exemplo - ou reduzir os benefícios associados ao subsídio de desemprego, mas qualquer destas intervenções seria sempre normativa, ideológica, politicamente muitíssimo delicada e desaconselhável.

Perante este conjunto de situações, ou seja, (também) porque não há grandes soluções alternativas, a necessidade de mexer na LPE - e, antes de tirar conclusões, tenhamos em atenção de uma vez por todas que o «Portuguese labor market emerges as the most regulated in Europe in all existing rankings of indexes of employment protection» - acaba por tornar-se inevitável.

É que se nada for feito, corremos mesmo o risco de cair no cenário que Olivier Blanchard afirmava há 2 anos ser o mais provável para Portugal (se, repito, não houvesse policy changes): «the most likely scenario is one of competitive disinflation, a period of sustained high unemployment until competitiveness has been reestablished, the current account deficit and unemployment are reduced». E acrescenta: «It is a process fraught with dangers, both economic and political, and one which can easily derail».

Este é um cenário que todos aqueles que não respiram a lógica do quanto-pior-melhor deviam, parece-me, querer evitar.

Anunciado o fim da retenção em França

Em função das discussões dos últimos dias neste e noutros blogues, deixo, por curiosidade, a notícia: o ministro da educação francês, Xavier Darcos, anunciou o fim da retenção como instrumento pedagógico ao dispor do corpo docente para lidar com os alunos com dificuldades de aprendizagem.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Criação de emprego e reforma laboral

Um dos grandes desafios presentes e futuros de qualquer Estado social preocupado com a sua sustentabilidade é a capacidade de manter um nível elevado de crescimento de emprego. Sem crescimento de emprego o financiamento de qualquer sistema de protecção social - e não aqui falo no bem-estar das populações sequer - estará em maus lençóis.

Muito se tem discutido, mais do ponto de vista ideológico do que científico, sobre a reforma laboral em curso em Portugal. É importante reconhecer que existem estudos que mostram que sistemas com leis oficialmente rígidas (na prática é outra coisa: mas a flexibilidade que existe é também o outro lado da não aplicação da lei - e da sua não aplicação precisamente pela sua rigidez) não são amigas da criação do emprego.

Diz-se por vezes que não existe estudos que mostrem o efeito da regulação laboral sobre a criação de emprego. Isso nao é bem verdade. Existem inúmeros trabalhos que apontam para um efeito - fraco nuns casos, moderado noutros, mas que pode ser muito importante em certos casos individuais. Este quadro, por exemplo (retirado deste livro), mostra a existência de uma correlação razoável [-.495 (-.596 sem a Irlanda e a Holanda, casos excepcionais de capacidade de criação de emprego, por motivos diferentes)] entre a criação de emprego (média anual do crescimento do emprego total entre 1990 e 2002) e a protecção legal do emprego (no final da década de 1990). Isto é um sinal importante de que, em certos casos, a excessiva rigidez oficial (que, repito, produz precariedade e informalidade pelo incentivo que oferece ao incumprimento da lei, um fenómeno de extraordinárias e perversas dimensões em Portugal) pode, em vários casos, dificultar a criação de novos postos de trabalho. Alguma flexibilização - que não significa de modo algum uma desregulação tout court, atenção - pode ser justificada se isso permitir ganhar alguma capacidade de criação de emprego, em particular quando os níveis de desemprego sobem e ameaçam instalar-se de forma consolidada. A dimensão legal está longe de ser a única variável aqui em causa, claro, mas é expectável que uma mudança equilibrada aqui permita 'ganhar terreno' ao fenómeno do desemprego, como alguns países têm vindo a fazer pela Europa fora, em cooperação com os sindicatos (pelo menos os que percebem a centralidade do problema e querem ajudar a resolver o problema). Tornar o emprego difícil - e incentivar, indirectamente, os empregadores a adquirir máquinas em vez de contratar pessoas - não é uma estratégia viável nem inteligente nos nossos dias.



As palavras do autor, Jonas Pontusson, devem ser lidas com rigor, atenção e cautela: «A liberalização das regras de protecção de emprego dificilmente pode ser vistas como o elemento central da luta contra o desemprego, mas as economias de mercado social bem podem melhorar o seu desempenho relaxando as suas regras» (p.124).

Nos próximos dias voltarei a este tema.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Para romper de vez com a reprodução social

Ao longo destas últimas quatro décadas o binómio democratização/igualdade de oportunidades ainda não foi plenamente resolvido pela escola e pela maior parte dos sistemas educativos dos países ocidentais. Se inicialmente se pensou que a mera generalização do acesso à educação institucionalizada por parte de todas crianças, independentemente da suas origens sociais, permitiria uma atenuação considerável da desigualdades, logo se percebeu, designadamente por intermédio dos estudos em sociologia da educação (e, em particular, a partir deste) que outro factor de distinção emergia com grande clareza: o insucesso escolar. O caso português é paradigmático a este respeito: a massificação do sistema levada a cabo nos anos 80 e 90, representou uma indubitável democratização no acesso, mas ficou aquém de uma efectiva democratização do sucesso educativo. Os índices de retenção e de abandono escolar são indicadores demonstrativos da situação problemática que se vive em Portugal.
Os dados apontam para uma forte reprodução social entre a origem familiar, o percurso escolar do aluno e, posteriormente, a sua trajectória profissional. De facto, em meios mais desfavorecidos a escola tem apresentado uma grande dificuldade em inverter as desvantagens de partida e transformá-las em vantagens adquiridas por intermédio da interiorização das competências necessárias. Este quadro não é homogéneo, como bem referiu o Hugo: paralelamente, existem focos de excelência no sistema educativo que se expressam em bons resultados escolares.
Por este motivo, as políticas de democratização do sucesso educativo deverão deter um carácter diferenciador, que atenda aos factores ligados ao contexto sem, contudo, exercer sobre estes um conjunto de receitas e de procedimentos previamente estabelecidos (embedded autonomy). Como referimos, as desigualdades não se desenvolvem uniformemente no seio da sociedade, pelo contrário, estas são intrinsecamente irregulares (variam em função de inúmeros factores). Deste modo, as medidas políticas deverão deter, cada vez menos, um carácter homogéneo e excessivamente centralizador. Esta mudança operatória no seio do Estado social significa um imenso desafio com o qual se confrontam a maior parte das sociedades modernas.

Poderá a escola ser um par de sapatos?

[Correndo o risco de politizar um pouco mais do que tem sido 0 meu registo habitual neste blogue, gostaria de lançar alguns argumentos que reforçam a questão, salientada pelo excelente post (anterior) do Hugo, da desvalorização da escola pública por parte de alguns editorialistas nacionais e de um certo sector da direita. Tomei a liberdade de re-publicar um post que escrevi há mais de dois anos (neste blogue desactivado) sobre o que significaria a privatização do sistema educativo].

A crítica principal a um eventual sistema de ensino totalmente privado tem a ver com a seguinte questão de princípio: poderá a educação ser mercadoria? Para a direita liberal a lógica que está na base da produção e comercialização de um par de sapatos adequa-se a qualquer outro bem ou serviço. Se o par de sapatos tiver qualidade e um preço competitivo terá certamente sucesso num mercado livre, se a qualidade tiver aquém do preço pedido, provavelmente os sapatos não sairão da prateleira. O mesmo se pode aplicar à escola, se o serviço for de qualidade e se adequar aos custos de frequência, a escola terá sempre fregueses.
E qual são os serviços prestados por uma escola? Basicamente, ela tem duas funções que estão indirectamente associadas (pelo menos na escola pública). Por um lado, a escola é uma agente de socialização responsável pela transmissão de conhecimentos, ou seja, pela formação. Por outro lado, a escola detém uma função certificadora. Isto é, cabe a esta instituição certificar as competências dos seus formandos. Essa certificação será essencial para concorrer no mercado de trabalho e para ter acesso a um emprego.
Se encararmos a escola como um par de sapatos, sabemos, à partida, que ao comprarmos os seus serviços, estamos a comprar conhecimento e um certificado (estes passam a estar directamente associados). Como consumidores deveremos ter a liberdade de exigir que a escola não só forme os nossos filhos, tendo por base os conhecimentos que consideramos mais relevantes, como deveremos exigir uma certificação que corresponda ao nível dos custos efectuados. Como não é difícil perceber duas perversões nascem desta lógica mercantil.
A primeira advém de um pressuposto errado, ao considerar que racionalidade da escolha valorizará sobretudo a qualidade do conhecimento e não o nível da certificação obtida. Ou seja, muitos pais poderão escolher dada escola não pela sua qualidade mas porque esta atribui em média notas mais elevadas, de modo a que os seus filhos tenham mais vantagens perante o mercado de emprego. Sem grande dificuldade cairíamos numa concorrência certificadora, ao invés de uma concorrência assente na prestação de um ensino de qualidade. A segunda relaciona-se com a valorização de certos saberes em detrimento de outros. Tendo por base uma racionalidade meramente mercantil, facilmente se exigiria que a escola transmitisse preferencialmente determinado tipo de conhecimentos que mais se coadunassem com os requisitos do mercado de trabalho. Muitas disciplinas desapareceriam certamente.
Pode argumentar-se que o sistema de ensino público também estabelece uma seriação e hierarquização disciplinar, mas, apesar de alguns critérios poderem ser questionados, estes não têm por base uma lógica dominantemente mercantil e certificadora. Quando pomos os filhos na escola pública (e também numa privada) exige-se que eles aprendam e que sejam bem ensinados. Não me parece que perante um sistema totalmente privado a exigência continue a ser só essa. Esta é a perversão maior em transformar a educação num par de sapatos.

terça-feira, 24 de junho de 2008

O discurso do "facilitismo", ou o ataque ideológico à escola pública

O ataque aos sistemas públicos de saúde e educação tendencialmente universais e gratuitos (sim, eles são pagos, mas suportados diferencialmente por quem mais rendimentos aufere, logo, são serviços que resultam da redistribuição) é o primeiro passo no caminho para criar na opinião pública a ideia da necessidade do seu desmantelamento e da sua privatização.
Nos últimos tempos, temos assistido a uma campanha contra o serviço público de educação por parte de muitos meios de comunicação e comentadores sem o conhecimento mínimo da realidade sobre a qual discursam. O discurso do "facilitismo" do ensino público é uma estratégia óbvia para retirar a confiança das classes médias no sector, e dar a ideia que só o privado é que é de qualidade.
O 'facilitismo' tem sido avançado como problemático na matemática. Eu já tinha feito este exercício há vários meses, mas dado o calor - e a demagogia - da discussão actual, vale a pena recordar os dados do PISA 2006, que permite avaliar o nível de literacia matemática dos alunos portugueses num contexto internacional (quadro retirado deste relatório).



Vale a pena olhar com atenção. O nosso resultado global, é verdade, é fraco: 466 (linha verde), comparado com a média estandardizada de 500 (linha vermelha) para os 57 países que participaram no estudo. Mas olhemos uma segunda vez, tendo em conta este dado: o PISA é aplicado a estudantes de 15 anos independentemente do ano de escolaridade que frequentam (15 anos é a idade escolhida por ser a que corresponde na maioria dos países ao final da escolaridade obrigatória). Portugal é o único país da Europa com tantos alunos inscritos em tão diferentes anos de escolaridade (ver as várias 'bolas'), ou seja, com tantos alunos em atraso, resultado das sucessivas retenções de que foram alvo.

Os alunos que, com 15 anos, estão no ano de escolaridade 'certo' (ano modal) - que em Portugal é o 10.º ano - têm, afinal, um bom (para não me exceder nos adjectivos) resultado: 520. Este resultado seria impossível se o ensino da matemática estivesse a ser assaltado por um qualquer 'nivelamento por baixo'. Assim, o real problema é a diferença entre o aluno médio do ano modal e o aluno médio: comparado com outros alunos, Portugal tem uma percentagem excessiva de alunos fracos ou muito fracos, para os quais o sistema não encontra resposta (a diferença entre o aluno modal e o aluno médio é de 54 pontos(!) - isto é, 520 menos 466 -, sem comparação com o que sucede com qualquer outro país). São estes os alunos nos quais temos que pensar, seja a nossa preocupação a equidade ou a eficácia, e são eles que, tendo ficado para trás - é duvidoso que um aluno no 7.º ou no 8.º ano perceba sequer muitas das perguntas que lhe são colocadas no teste do PISA, por isso não são de espantar os resultados medíocres obtidos - exigem soluções pedagógicas extraordinárias.

Isto não significa dizer que não existe qualquer problema no desempenho dos alunos portugueses a matemática. Existe. Mas o problema não é o 'nivelamento por baixo'. O resultado médio do nosso 'aluno modal', ou seja, que não perdeu nenhum ano no seu percurso escolar, é um bom resultado (520). O verdadeiro problema é antes a dualização entre os alunos que estão onde deviam estar e os "outros", para os quais não houve nenhuma estratégia alternativa senão, claro está, retê-los. Retê-los uma, duas, três vezes. Os alunos que estão no 7.º e no 8.º ano de escolaridade, ou seja, que foram retidos 3 e 2 vezes são, respectivamente, 6,6% e 13,1% da amostra do PISA (que é uma amostra aleatória estratificada do nosso sistema), o que perfaz 19,7% de alunos muito atrasados (isto é, 1 em cada 5). Nenhum outro país europeu se aproxima deste valor (o mais próximo, quase residual, é de 7,1% em Espanha).

O nosso problema, repito, não é ausência de alunos de boa qualidade. Nem é sequer o facto do nosso sistema não ser selectivo. É, antes, muito selectivo - no sentido em que separa os alunos, deixando uma grande fatia deles para trás.

O nosso problema está, para usar a esclarecedora expressão usada pelo representante da persecutória Sociedade Portuguesa de Matemática ontem num programa da SICNotícias, os alunos "mais fraquinhos" (expressão seguida de risadas adolescentes - que serviram de inequívoco marcador ideológico). O problema é sempre este: enquanto estivermos obcecados com a produção de uma 'minoria de excelência' e não procurarmos estratégias centradas na resolução dos problemas dos alunos "fraquinhos", eles vão continuar sempre a existir (por desatenção político-pedagógica cristalizada nas práticas, e não por qualquer 'efeito da natureza'). E a retenção, enquanto estratégia pedagógica, nada pode contra este problema*.

*Esta não é uma opinião caída do céu. Só para dar um pequeníssimo exemplo, em 2001, num artigo que recenseava os estudos feitos sobre os efeitos pedagógicos da prática da retenção ao longo do tempo em diferentes sistemas de ensino, concluía que «over 50 years of educational research has failed to support any form of grade retention as an effective intervention for low achievement», in Dalton, M., P. Ferguson and S. Jimerson (2001), “Sorting out of Successful Failures: Exploratory Analyses of Factors Associated with Academic and Behavioural Outcomes of Retained Students”, Psychology in the Schools, Vol. 38(4).

Adenda: este post suscitou uma discussão interessante aqui.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Embedded Autonomy

Pegando no post anterior, considero que a noção de embeddedness, desenvolvida nomeadamente por Peter Evans, é a que melhor define essa necessidade de articulação entre diversas organizações (designadamente, o terceiro sector), as agências públicas e a implicação dos actores locais no futuro das respectivas comunidades e regiões. Tal como defende o autor, para se gerar este tipo de sinergias o Estado não pode ser posto de lado, mas, também não deverá assumir um papel desmesurado e excessivamente centralizador, que impõe programas e projectos de cima para baixo.
O Estado deve deter a elasticidade para imergir (embedded) nos distintos contextos territoriais de maneira a propulsionar redes e plataformas de interconexão (capital social) que abarquem transversalmente os cidadãos, as associações e os agentes públicos. Mas, simultaneamente, deverá dotá-los das condições básicas para que estes detenham alguma capacidade de autonomia face a uma excessiva dependência do poder central. A noção de embeddedness contempla esse carácter interactivo do Estado como agente propulsor de capacidades, que urge implementar nas políticas públicas. Só assim este poderá deixar de ser encarado como uma entidade exterior, que impõe determinados modelos e regras, para passar a ser visto como um parceiro institucional.

sábado, 21 de junho de 2008

Onde o habitual "facilitismo" tem deixado Portugal

Num dia em que uma parte do país protesta pelo facto de os exames de matemática do 9.º ano terem sido alegadamente uma prova «mais fácil do que nos anos anteriores» - aparentemente alimentando a velha ideia de que exame que não sirva para chumbar muitos, não é exame decente, e que a validade dos exames se mede no nível de alunos que pretende deixar para trás - convinha recordar o que separa Portugal do resto da Europa. Se o nosso sistema é "facilista", imaginem se fosse mais selectivo do que já é (porque o é: o problema é que preferimos manter ao longo de um tempo um sistema selectivo sem introduzir métodos pedagógicos que permitissem fazer subir o nível dos alunos mais fracos, agindo precocemente sobre eles). Com algum azar, estaríamos fora do mapa (o gráfico é retirado daqui).
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sexta-feira, 20 de junho de 2008

Gastos privados em saúde demasiado altos

Esta notícia publicada no "Diário de Notícias" de hoje - intitulada "Famílias portuguesas lideram gastos na saúde" - sobre este relatório do Eurostat revela um cenário preocupante. O quadro seguinte resume a situação dos gastos dos agregados familiares europeus (para a União Europeia a 27, ano de 2005).
Para quem tem um sistema nacional de saúde tendencialmente público e universal, o facto de os portugueses serem os que mais gastam em saúde comprova a situação conhecida de falta de eficiência, de eficácia e de cobertura do sistema em áreas-chave. Isto não pode deixar de gerar enormes problemas de equidade. É pena que o relatório não disponibilize os dados desagregados por quintil ou decil, para cada país (há dados relativos aos gastos do último do primeiro e do último quintil, mas sem informação relativa a cada Estado).

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Globalização, Estado social e desigualdades

A globalização é um risco ou favorece o Estado social? Devemos resistir ou olhá-la de frente?
Todos já ouvimos a ideia de que globalização leva ao aumento das desigualdades e ao desmantelamento dos Estados sociais. Felizmente, quase tudo o que sabemos do processo de construção histórica dos sistemas de protecção social mais generosos do mundo prova que esta ideia é errada.

Assim, é um dado adquirido que, historicamente, as economias mais integradas no comércio internacional são as de países pequenos (Suécia, Noruega, Finlândia, Áustria, Holanda ou Bélgica) que construíram sistemas de protecção mais generosos. São casos em que os países retiram força da sua posição de fraqueza: o seu pequeno mercado interno torna-as vulneráveis aos choques externos. Ora, é precisamente esta vulnerabilidade que serve de incentivo à coordenação de actores diferentes - governo, capital, trabalho - no sentido de cooperar, construindo instituições e desenhando estratégias que sirvam a todos, evitando que essa vulnerabilidade se transforme em instabilidade económica. Por outras palavras, a vulnerabilidade económica favorece os compromissos de classe e a criação de um 'bem público' que é a segurança colectiva contra os choques exógenos. Esta é, portanto, uma estratégia de compensação, onde se troca a integração na economia internacional - com a crescente vulnerabilidade que isto traz - pela construção de dispositivos de protecção dos cidadãos. Assim, os países não se integram nas dinâmicas do comércio internacional apesar do Estado social - elas integram-se precisamente porque ele existe, ao mesmo tempo que essa integração favorece a expansão deste. Estado social e globalização das trocas evoluem de mão dada. Este livro mostra a força empírica desta hipótese. Mais à mão, também se pode ler o que escrevi aqui.

Inversamente, a actual globalização traz mais problemas aos países que historicamente dependeram menos do comércio internacional - seja porque tinham mercados internos grandes (EUA ou Reino Unido), sejam porque apostaram no proteccionismo (Austrália) -, e que, por terem estimulado a competição interna mais através da desregulação do mercado laboral assente em altos níveis de mão-de-obra desqualificada do que pelo desenvolvimento de uma produção industrial de qualidade que uma mão-de-obra qualificada permite, sofrem mais directamente a concorrência dos países do Sul quando a globalização comercial se intensifica.



E Portugal? Portugal, infelizmente, comporta-se como se fosse uma França ou uma Alemanha e tivesse um mercado interno gigantesco. Veja-se a figura: Portugal devia estar junto das outras economias de pequena dimensão, que enriqueceram pela via da exportação de produtos especializados e de qualidade. São também os países onde as desigualdades são mais reduzidas, e o Estado social mais generoso na protecção dos riscos e na 'propulsão', para usar a muito feliz expressão do Renato, das capacidades dos cidadãos/trabalhadores. Onde uma grande fatia da população tem altas qualificações. E onde a globalização comercial foi desde sempre vista como uma oportunidade, e não como um 'monstro' (como é visto o mercado interno europeu, noutra versão da globalização, esta mais 'regionalista') de que era preciso fugir (porque será que os movimentos anti-globalização são muito mais fortes numa França ou numa Alemanha do que numa Dinamarca ou numa Suécia?...).

Quem resistiu, foi perdendo o comboio da aprendizagem que só a participação em mercados competitivos - isto é, internacionais - confere. Foi vivendo de pequenos balões de oxigénio e proteccionismos que não duram sempre. E um dia acorda e vê que a China inundou os mercados internacionais com produtos mais baratos. O problema, claro, é que quem resistiu não devia, nesta altura do campeonato, estar a concorrer com a China.

Os princípios de um Estado propulsor

Há dois dias decorreu no ISCTE uma conferência muito interessante sobre a reforma e a sustentabilidade do Estado Social. O conferencista (Anton Hemerijck, do Scientific Council for Government Policy), para além de uma sistematizada apresentação dos vários modelos de Estado Social e respectivas evoluções, desenvolveu uma proposta de análise a partir da noção de recalibração. Ou seja, em vez de se salientar a sistemática crise ou compressão das políticas sociais, é mais interessante enveredar por uma via reformadora que inventarie e perspective um conjunto de factores dinâmicos e multidimensionais capazes de recalibrar os ‘tradicionais’ pilares do Welfare State.
Uma dessas dimensões passa por incorporar no Estado de investimento social (uma expressão cara ao Hugo) a função de promoção social que em paralelo com a função de protecção consiga mobilizar os recursos necessários para produzir novas capacidades económicas e sociais. Não se trata de limitar ou de reduzir o papel redistributivo e protector do Estado, mas de acrescentar uma valência que poderá, ao mesmo tempo, contribuir (em parte) para a sua sustentabilidade e intervir de forma mais directa e incisiva em certos sectores (im)produtivos.
Partindo destes princípios gerais, considero que esta função não só é vital para o Estado, como é fundamental para a revitalização de determinadas áreas da sociedade que, apesar de se encontrarem em situação de maior fragilidade, detêm algum capital potencial que pode ser dinamizado e, porque não dizê-lo, rendibilizado. Refiro-me, por exemplo, a jovens qualificados desempregados ou precários cujo capital humano deve ser redireccionado; mas também me refiro às comunidades periféricas (em meio urbano ou rural), que detêm uma variedade riquíssima de saberes, práticas e de redes sociais suficientes para catapultar novas estratégias e modos de produção económica. Mais do que recalibragem entendo que o Estado social deverá ser um agente propulsor de desenvolvimento que consiga imergir nos mais diversos contextos sociais e territoriais de modo gerar sinergias locais. Isto implica uma reformulação orgânica profunda no seio das instituições e das agências públicas. Voltaremos a esta questão num próximo post…

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Igualdade de oportunidades, mobilidade, competição

Um dos argumentos contra uma distribuição de rendimentos igualitária é a de que ela seria nociva para a competição entre trabalhadores (e empresas). E onde falta a competição, faltaria a qualidade e a eficácia.

Ora, é provável que uma distribuição salarial/rendimentos excessivamente igualitária possa ter, a partir de um determinado ponto, efeitos perversos na competição, na qualidade e na eficácia.
Mas esta é uma daquelas afirmações que faz sentido em abstracto - como também faz sentido, em abstracto, afirmar o contrário: que excessiva desigualdade cria situações de armadilha e de círculo vicioso que impedem os indivíduos de competir com os que têm mais recursos, cuja vantagens sobre os que estão abaixo os podem transformar numa quase-aristocracia.

Faz sentido em abstracto, mas também faz empiricamente. Se olharmos para o quadro da fotografia, retirado deste livro (do capítulo 10, de Gosta Esping-Andersen, p.227), vemos, na primeira coluna, a desigualdade de rendimentos relativa aos 8 países listados, medida pelo índice de Gini; na segunda coluna, vemos a correlação entre os rendimentos de duas gerações. Vemos que esta correlação é mais baixa nos países com menos desigualdades; inversamente, é maior a probabilidade do filho ter rendimentos da ordem dos da sua família nos países onde as desigualdades são mais elevadas.



Na perspectiva de que a competição, para ser justa, implica um level playing field, a relativa igualdade entre indivíduos e a competição não são incompatíveis. Voltando à expressão que usei há uns dias, um capitalismo que produz elevadas desigualdades que, cristalizadas, se reproduzem ao longo do tempo e passam de pais para filhos, tenderá a ser um capitalismo de herdeiros.

Elementos empíricos deste género questionam fortemente o argumento meritocrático segundo o qual «não interessam tanto as desigualdades; o que interessa é que a sociedade seja aberta, permita a mobilidade e premeie os melhores». Na verdade, se as desigualdades se transmitem intergeracionalmente, só a sua redução ou a sua conservação a níveis baixos pode garantir alguma mobilidade e, sobretudo, competição entre os indivíduos, independentemente da sua origem social.

Isto é importante porque, por muito anti-igualitarista que seja a posição liberal, há apesar de tudo um fundo que aproxima esquerda e direita, herdeiras que são do argumentário da modernidade: a ideia de igualdade de oportunidades. O problema na posição liberal, claro, é que a sua adesão tende a ser mais retórica que qualquer outra coisa, dado que se esquece do fundamental. Concretizar a igualdade de oportunidades, levá-la a sério, colocar carne política no esqueleto normativo é difícil, dado que exige aquilo para o qual o liberal não está muito inclinado: exige redistribuição e igualização intra- e intergeracionalmente das oportunidades.

Sindicalismo, coordenação e salários à escala europeia

aqui se escreveu sobre a importância das instituições de mercado de trabalho e das relações laborais nas dinâmicas de negociação colectiva, e a forma como estas impactam na distribuição de salários, originando estruturas salariais mais ou menos comprimidas - contribuindo, dessa forma, para maiores ou menores desigualdades de rendimentos.

Nas últimas décadas, as instituições sofreram algumas mudanças, e o grau de centralização na negociação colectiva - quanto maior a centralização, maior a compressão salarial - diminuiu sensivelmente em alguns países onde era historicamente muito elevada. Isso contribuiu para alguma dispersão salarial. Mas isto não significa que tenha havido uma desregulação pura e dura destas instituições: o recuo da centralização deu lugar, nos países que são conhecidos na literatura como "economias coordenadas de mercado" [ECM] (países nórdicos e países continentais), a um sistema de negociação colectiva mais flexível que exige uma mais intensa coordenação entre sindicatos e entre empresas.
Isto foi diferente do que aconteceu nas "economias liberais de mercado" [ELM], que, partindo de níveis altos de desregulação, reforçaram esta estratégia - dado que é daqui que advêm as vantagens competitivas de muitas das suas empresas. Nos EUA, a administração Clinton tentou imitar as instituições laborais alemãs - mas sem grande sucesso: o que mostra que as instituições são mais resilientes que as políticas (e que políticas postas em práticas pelos governos, quando não têm o apoio dos parceiros sociais para mudar as instituições, estão demasiadas vezes votadas ao fracasso).

Infelizmente, estas diferenças entre tipos diferentes de "capitalismo" deviam ser apontadas por quem tinha obrigação de as conhecer - e de não as ocultar. O discurso da "neo-liberalização" e da "desregulação" de tudo ignora, por exemplo, que as empresas que produzem produtos de alta qualidade - que são o grosso das exportações europeias - e que empregam trabalhadores altamente qualificados estão pouco interessadas em desestabilizar radicalmente sistemas de regulações laborais estáveis e com uma presença institucionalizada dos sindicatos. A qualificação dos trabalhadores e a cooperação institucionalizada são bens extraordinariamente importantes na produção de mercadorias de alta qualidade. São vantagens competitivas das empresas. É do seu interesse manter estes recursos e estas condições, mesmo que adaptando-as às condições actuais de um mercado crescentemente globalizado e maior mobilidade de capitais. Quando os sindicatos estão organicamente implantados nas empresas e são responsáveis perante uma importante maioria dos trabalhadores nacionais - o que lhes confere legitimidade, responsabilidade e experiência gestionária -, as empresas dificilmente podem fazer re-estruturações curto-circuitando os mecanismos estabelecidos de negociação. Por isso, os processos de adaptação e transição são mais cooperantes, eficazes e equitativos. Quando isso não acontece, em particular nos mercados de trabalho desregulados, os sindicatos pouco representativos e institucionalmente fracos só têm como alternativa vir para as ruas - e as empresas não têm outra solução senão fazer lobbying sobre os governos no sentido de desregular ainda mais. O conflito laboral é, nestes casos, sinal de incapacidade sindical - e não o seu contrário, como a interminável mitificação do discurso da "luta nas ruas" continua a fazer passar.

Quando se ignora esta diferença elementar entre ECMs e ELMs, não se estão apenas a ignorar diferenças e tendências empíricas reais no interior do espaço europeu. Está-se a ignorar também a oportunidade que traz a criação do mercado único, que é para muitos um monstro por aí à solta que vai levar a um race to the bottom das regulações laborais e níveis de protecção social. Ora, estas teses, embora proferidas à esquerda, mais parecem saídas da literatura neo-liberal - que aplaude este cenário, obviamente, enquanto a esquerda protesta - do que a literatura institucionalista em economia política. Segundo esta, a constituição do mercado único pode constituir uma oportunidade provavelmente única para resolver os problemas de acção colectiva do sindicalismo europeu, obrigando-o a encontrar formas de coordenação eficaz a nivel transnacional.

Num debate um pouco diferente deste - sobre a flexisegurança - escrevi há vários meses noutro sítio:

«o sindicalismo devia ver este contexto como uma oportunidade para fazer um trabalho de internacionalização/europeização sério e de luta contra as barreiras que criam desigualdades entre trabalhadores. Uma política europeia de inflação baixa, gostemos dela ou não, tem a virtude de obrigar os sindicatos a pensar nos efeitos colaterais das suas reivindicações salariais (tanto nas desigualdades entre trabalhadores como no desemprego). Introduz, por isso, uma disciplina que é mãe da inteligência e da estratégia num sector tantas vezes dominado pela ideologia preguiçosa. Por incrível que pareça, a verdade é que uma política restritiva do Banco Central Europeu pode ter o condão de pressionar os sindicatos a coordenarem as suas políticas a nível transnacional, ajudando a resolver um problema - que é hoje bem real - de acção colectiva».

É verdade que as políticas do Banco Central Europeu podiam e deviam prestar mais atenção ao emprego. Mas convém não esquecer que o BCE segue de perto a linha que seguida tradicionalmente na Alemanha pelo Bundesbank, e que este tem uma história de cooperação com o maior sindicato alemão do sector exportador (IGMetall). Assim, e cito (e traduzo) de um texto de Bob Hancké (um dos mais importantes investigadores sobre relações laborais na Europa do ponto de vista institucionalista):

«Especialmente na União Europeia, a processo que antecedeu a união monetária aumentou a pressão institucional para a convergência em direcção a uma versão do modelo alemão de coordenação flexível. O Bundesbank e o IG Metall, o mais importante sindicato alemão do sector exportador, têm estado nas últimas duas décadas [1980 e 1990] envolvidas num jogo de sinalização mútua, no qual a inflação salarial e as taxas de juro estavam fortemente ligados [...] Replicando a ligação entre o Bundesbank e o IG Metall, muitas iniciativas foram levadas a cabo noutros países da União Europeia na última década [de 1990] para alinhar os desenvolvimentos salariais com aqueles da Alemanha, e o resultado tem sido a emergência ou o reforço na maioria das países de alguma forma de negociação salarial colectiva coordenada».

Por isso,

«na viragem do século, as EMCs estavam a convergir em diferentes versões de um modelo comum que ligava um sistema de negociação salarial central mas flexível com estruturas de decisão descentralizadas nas empresas (...) estes desenvolvimentos receberam na Europa um forte empurrão da integração europeia: a maior interdependência entre as economias europeias forçou os sindicatos a ter em conta os procedimentos de negociação colectiva e os efeitos das suas estratégias domésticas nos seus parceiros comerciais».

O futuro da negociação colectiva e da luta contra as desigualdades salariais também - e, já agora, o futuro da Europa enquanto espaço socialmente coeso e economicamente competitivo - passa por aqui. Passa por não contrapor por definição mercado e protecção social - dado que historicamente eles cresceram de mãos dadas - , e empresas e sindicatos - dado que historicamente foram as formas de institucionalização do conflito que criaram as estruturas de cooperação que trouxeram benefícios a todos. O que é importante - e esta é a melhor protecção contra a 'neo-liberalização' das instituições económicas - é manter a estrutura do tecido económico europeu - com o círculo virtuoso entre altas qualificações-alta especialização- altos salários-alta tecnologia -, e alargar esta lógica ao sector dos serviços -> onde a maioria da população trabalha hoje, onde os sindicatos 'entram' tradicionalmente menos que a indústria, e onde são necessários os ganhos de produtividade que precisamos para financiar a protecção social à escala europeia.

E fazer o upgrade onde essa lógica é quase residual - como em Portugal, por exemplo.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Desigualdades e seus territórios

Como referi num post anterior, existe uma relação muito estreita entre desigualdades e territórios. No caso de Portugal essa relação é flagrante: quando se considera a diferenciação territorial - seja entre espaços rurais e urbanos, seja no interior das áreas urbanas, entre, por exemplo, bairros centrais e periféricos - tendo por base uma dada modalidade de estratificação (em classes, categorias socioprofissionais ou em distribuição de rendimento), as correlações tendem a subir consideravelmente. Focámos isso a propósito do estudo de Carlos Farinha Rodrigues, mas poderia referir outros estudos, alguns dos quais participei, e que demonstram que a variável território tem um efeito propulsor sobre as desigualdades sociais. Infelizmente, a sociologia tem-se vindo a afastar destas variáveis “clássicas” (classes sociais, territórios, rural-urbano), prematuramente em meu entender. Numa sociedade, como a nossa, em que em que as componentes líquidas da pós-modernidade (metáfora cara a um famoso sociólogo) desaguaram quase simultaneamente sobre os pilares de uma modernidade que ainda estava em construção, continua a ser pertinente voltarmos às tradicionais dualidades estruturais. Estou convencido que elas revelarão as discrepâncias mais relevantes e continuam a ser os melhores indicadores para a implementação de políticas públicas que pretendem tornar Portugal um país menos desigual. Uma abordagem agregadora que cruze o estudo das disparidades sociais, económicas e territoriais parece-me não só fundamental como representa o melhor suporte para uma política de coesão. A nível europeu há alguns trabalhos interessantes, como este, que a partir de uma perspectiva agregadora identifica os pontos fulcrais de divergência (e convergência) entre os países da União Europeia.

Pão, sim. Mas paz e habitação?

As revoltas vão e voltam nos banlieues parisienses sem grandes soluções à vista (malgré o muito badalado "Plan Banlieue"; ler o editorial de ontem do 'Le Monde' sobre este tema). Pensando a questão para além da demagogia catastrofista e da excessiva condescendência a que estas coisas se prestam no sensacionalismo diário: a área da habitação e da propriedade parece-me uma área onde tanto a reflexão como as políticas públicas parecem menos avançadas. Aqui, deixar o mercado funcionar tem consequências previsíveis: pequenos paraísos para os ricos num lado, bairros problemáticos do outro, onde se concentram inúmeras fontes de insatisfação, sofrimento e violência individual e colectiva. O "ghetto francês" de que fala Eric Maurin neste pequeno óptimo livro, embora não se limite, de forma alguma, às questões residenciais, também é por elas composto e alimentado .

Não tenho solução nenhuma à mão, é verdade. Intervir agressivamente nesta área colidiria com algumas das mais lucrativas lógicas de investimento (com os interesses a elas ligados), por um lado, e com a relativa liberdade das classes médias e altas em "escolher" o sítio onde querem habitar, por outro.

Talvez a primeira "guerra reguladora" – com os interesses na especulação imobiliária, por exemplo – obtivesse o apoio de muitos; não estou certo que a segunda, limitando objectivamente o que são desejos legítimos das famílias e dos indivíduos em escolher o local onde querem habitar, obtivesse grande apoio público.

Parece-me de qualquer forma que as tendências de segregação residencial accionadas no último terço de século em algumas das grandes cidades produzem inúmeros efeitos perversos que trazem lucro e bem-estar a alguns - para além do seu impacto nas desigualdades patrimonais entre indivíduos e famílias, naturalmente -, mas produzem enormes externalidades negativas que se concentram esmagadoramente, claro, naqueles que menos recursos dispõem para fugir delas. Argumentar, como é costume ler nos escritos de certos editorialistas, que "quem sai, sai; quem fica, que tivesse saído", não é sério. Pensar que o "votar com os pés" resolve alguma coisa passa por cima da diferença entre uma análise de equilíbrio parcial e uma análise de equilíbrio geral, e comete uma elementar falácia da composição: o que faz sentido para um ou alguns agentes deixa de fazer sentido se todos tomarem a mesma decisão. Assim, quem consegue abandonar o bairro problemático A para uma zona mais qualificada pode melhorar (imediatamente) as suas condições de bem-estar e (a prazo) as suas oportunidades na vida, por comparação à sua situação anterior e à situação em que permanecem os seus ex-vizinhos; mas se todos os habitantes abandonassem o bairro problemático A no mesmo momento - ou num curto espaço de tempo - não resolvíamos problema nenhum se isso não representasse uma mudança séria nos recursos e nas oportunidades dos habitantes do bairro A. Em caso contrário, a fuga em massa do bairro A obrigava-nos a encontrar um bairro B onde as mesmas pessoas - e os mesmos problemas - seriam 'realojados'. Este erro de raciocínio tem origem numa forma individualista de pensar problemas que exigem soluções colectivas, ou seja, políticas. Não chega facilitar a exit individual; precisamos de voice, isto é, intervenção pública. O objectivo político não deve ser dar oportunidades a todos de saírem dos bairros problemáticos (como se chegasse dizer: "os que ficaram, paciência..."); deve ser acabar com estes.

Parece-me que os problemas sociais aqui envolvidos são demasiado importante para a sua resolução ser entregue ao mercado. A luta contra a reproduçao inter e intrageracional de desigualdades e de privilégios também devia passar por aqui (e não apenas pela existência de um imposto sobre a propriedade, sobre a riqueza, ou sucessório, por exemplo).

Assim, nas discussões de política educativa, existe a ideia de que as escolas devem manter um student mix que evite a segregação e aumente a possibilidade dos piores alunos beneficiarem das externalidades positivas que decorrem da partilha do mesmo espaço de aprendizagem com os melhores alunos (numa estratégia que combina uma preocupação simultânea com a equidade e com a eficácia global das aprendizagens). Na política de habitação, faria sentido impor um nível de social mix mínimo numa dada área residencial? Se sim – e tenho simpatia pela ideia -, seria possível concretizá-lo? Como? E quais os efeitos perversos? Seriam estes muito caros e insuportáveis?

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Ainda sobre os indicadores de bem-estar

Em vários posts neste blogue tem sido explorada a questão dos indicadores de bem-estar. Nos primeiros dias, a discussão centrou-se muito nos indicadores relativos à desigualdade de rendimentos: uma dimensão limitada, claro, mas que tem a vantagem de estar relativamente estandardizada a nível internacional e permitir comparações de geometria variável (que tornam, naturalmente, a imagem mais complexa do que aquela que se através de abordagem assente exclusivamente num só indicador). Mas este é um indicador entre vários, e não é nenhuma bala mágica, seja académica, seja politicamente (é com estranheza que sou remetido para a posição de quem defende 'apenas' o uso de indicadores estandardizados internacionais, necessariamente limitados, como os que dizem respeito à distribuição dos rendimentos – e classicamente construídos e explorados mais por economistas do que por sociólogos; aliás, há muito tempo que procuro apresentar múltiplos (novos) indicadores de desenvolvimento, bem-estar e riqueza de alcance internacional - por exemplo, aqui, aqui, aqui e aqui).

Os países nórdicos, por exemplo, lideram uma longa tradição no estudo das questões de bem-estar de um ponto de vista multidimensional através das suas Level of Living Surveys, conduzidas regularmente a nível nacional e usando baterias estandardizadas de indicadores sobre áreas diversas, dispondo cada uma delas de vários indicadores: os recursos económicos disponíveis no agregado familiar; a situação individual perante o trabalho; o estado de saúde; o nível de segurança da vida e da propriedade (i.e., exposição à violência); a rede de relações sociais;o nível e qualidade da educação, etc. (alguns dos dados e destas dimensões de bem-estar são explorados em alguns capítulos deste livro; alguns elementos sobre os trabalhos suecos aqui; em baixo pode-se encontrar uma tabela com as dimensões de nível de bem-estar e algumas das áreas cobertas pela survey sueca entre 1968 e 1991, retirada daqui).



É esta abordagem multidimensional e longitudinal - é importante chamar a atenção para o facto de estes estudos permitirem não apenas uma fotografia polaroid (como estudos num dado momento fazem) mas, dado que são recolhidos regularmente, uma visão de como os problemas evoluem, de preferência em interacção com o ambiente macroeconómico e medidas políticas tomadas – que pode e deve alimentar a reflexão simultaneamente académica e política em torno do desenho, implementação e eficácia de políticas públicas de promoção do bem-estar e de combate às desigualdades - e integrando, sempre que possível, os resultados de estudos mais contextualizados, seja de cariz quantitativo ou qualitativo (muito importantes para captar fenómenos que correm sempre o risco de ficar sub-avaliados ou de passar despercebidos em estudos mais estandardizados).

25% das crianças são mal classificadas pela escola

Continuando a ler este livro sobre pobreza infantil em sete concelhos da Área Metropolitana de Lisboa, é importante reter um dado que talvez seja um dos mais significativos do estudo. Tem a ver com a diferença entre a forma como as crianças são classificadas pelas escolas, a partir de critérios exclusivamente relacionados com a pobreza monetária, e os itens usados pelos autores para definir as condições de privação. Assim, cerca de 25% das crianças são mal classificadas, havendo 22% que estão, segundo os resultados do estudo, numa situação de privação e são identificadas por parte das escolas como não carenciadas e, por outro lado, 3% que não se encontram em privação mas são consideradas como carenciadas.
Esta dissonância dos critérios utilizados na avaliação das condições de privação em cerca de um quarto da população inquirida é, sem sombra de dúvida, um aspecto preocupante que pode condicionar o sucesso de determinadas políticas públicas que urge implementar (algumas das mais prementes são elencadas no último capítulo do livro).
A definição e a concretização de algumas medidas, como esta que foi proposta pelo Hugo, podem correr um sério risco de subavaliarem o problema da pobreza infantil se partirem de critérios essencialmente monetários relacionados com a distribuição do rendimento. Tenho insistido nesta tecla (porque me parece ser um dos pontos fulcrais neste debate sobre as desigualdades): os índices e indicadores estatísticos mais utilizados e estandardizados são extremamente úteis para comparações internacionais, mas são insuficientes para a estipulação e implementação de políticas sociais. As ciências sociais, nomeadamente a sociologia, têm aqui um papel e uma função insubstituíveis….

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Os limites do New Labour?


Está a fazer notícia nos últimos dias em Inglaterra o facto de o New Labour estar em maus lençóis no caminho para uma ambiciosa metas fixada por Tony Blair em 1999: erradicar a pobreza infantil em 2020, e reduzi-la para metade em 2010. Blair fez esta promessa porque a pobreza infantil explodiu entre a partir de 1979, ano da eleição de Thatcher, passando a percentagem das crianças em situação/risco de pobreza de 14% para 33% em duas décadas. Nos primeiros anos, o processo, embora lento, não estava correr mal. De 1999 a 2005, o número de crianças abaixo da linha da pobreza baixou de 3,4 para 2,8 milhões, isto é, 600 mil, o que representa um valor médio anual de cerca 100 mil crianças por ano. Acontece que em 2005/2006, o valor cresceu em vez de diminuir (100 mil crianças precisamente), e está, em 2006/7, em 2,9 milhões.

O desaceleramento do crescimento económico será um dos culpados, mas essa não é toda a verdade; uma outra parte tem a ver para onde vai o crescimento económico. O gráfico (retirado daqui, clickar para aumentar) mostra, numa das figuras, que apenas o quintil mais rico ganhou na última década (o valor reporta-se a rendimentos e não a riqueza; dada a desigualdade patrimonial, o indicador relativo à riqueza revelaria certamente valores mais díspares). O segundo quintil manteve a sua fatia, mas todos os outros perderam. É um modelo distributivo que não beneficia nem as classes médias, nem os grupos de baixos rendimentos.

O Institute for Fiscal Studies estima que "additional spending on child tax credit of around £2.8bn a year by 2010-11 would be needed for the government to have a 50:50 chance of meeting its target". Vamos ver o que resolver fazer Brown. Mas é provável que o New Labour tenha batido no tecto no que à luta contra a pobreza diz respeito - pobreza infantil e não só, dado que a pobreza entre os pensionistas também aumentou (ver gráfico) .

Ou como Nick Cohen escrevia há cerca de um ano e meio num excelente artigo para o "The Guardian": «At least the super-rich will vote for Gordon Brown».

quinta-feira, 12 de junho de 2008

À margem

Deixei no meu outro espaço um post mais político do que aqueles que eu e o Renato concordámos que deviam constituir este blogue, que pretendemos mais analítico e menos 'político-partidário'. Dado que a reflexão se liga a questões que tenho abordado aqui nos últimos dias, fica aqui o link e um excerto:

«Falta o mais importante, talvez, à esquerda.
Implica que aceitemos que 'socialismo' e 'social-democracia' são, enquanto estratégias económico-políticas, coisas diferentes. Implica que o Estado (pós-)industrial deve consumir menos recursos que o Estado social. Implica que o objectivo da conquista dos meios de produção deve ser substituída pela optimização dos meios de redistribuição. Implica que aceitemos a destruição criativa Schumpeteriana, sempre complementada e compensada por formas de redistribuição criativa. Implica que se aceite a legitimidade da economia de mercado enquanto mecanismo (não-absoluto!) de coordenação societal, que pode e deve alimentar um capitalismo de bem-estar

A reprodução geracional da pobreza infantil

Saiu no mês passado o livro intitulado Um Olhar sobre a Pobreza Infantil. Análise das condições de Vida, escrito em coautoria por um conjunto de investigadores do ISEG. Este estudo tem por base um inquérito aplicado a uma amostra de 5000 crianças residentes em sete concelhos da Área Metropolitana de Lisboa (Amadora, Cascais, Lisboa, Loures, Odivelas, Oeiras e Sintra), durante os anos lectivos de 2004/05 e 2005/06.
Os dados confirmam que para além do rendimento do agregado, “(…) o número de irmãos, o nível de escolaridade do pai e da mãe, a existência de cuidados de saúde regulares e as condições de habitação são factores relevantes para a condição de privação da criança” (p. 58). Os agregados grandes (com mais filhos) são potenciadores de maiores níveis de privação. Por outro lado, é nos indicadores referentes à saúde que se encontram algumas das maiores disparidades. Por exemplo, só 39% das crianças vai ao médico por rotina, apenas 12% come uma refeição completa (constituída por sopa, prato principal e sobremesa), e 6% comem somente sopa e pão e, nem sempre, fruta.
Em termos de práticas de socialização, é importante salientar que a maioria das crianças não tem hábitos de leitura em casa. A frequência de actividades extracurriculares não é muito diversificada: 42% frequenta ATL (a maioria na escola), 38% actividades desportivas, 29% catequese, 12% inglês e, somente, 10% música.
A partir do modelo aplicado foi construído um índice de privação, verificando-se que cerca de 47% das crianças da amostra apresenta um nível de privação acima da média. A distinção entre este grupo e as restantes crianças deve-se em grande parte à origem social: “as crianças cujos pais têm profissões associadas a baixos níveis de qualificação (…), são preferencialmente consideradas como carenciadas. A análise dos resultados mostra que determinadas características das crianças, tais como: terem frequentado jardim de infância, terem hábitos de higiene e terem uma alimentação equilibrada está positivamente correlacionado com o nível de escolaridade dos pais e, em particular, com o nível de escolaridade da mãe” (p. 55).
Não é por acaso que no capítulo final dedicado a futuras (eventuais) linhas de intervenção, se realce a necessidade de serem “desenvolvidos programas específicos de promoção do desenvolvimento das crianças mais carenciadas, que permitam ultrapassar as carências com que estas vivem e, dessa forma, contribuir para a interrupção do ciclo intergeracional da pobreza” (p. 114).
Voltaremos a este livro...

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Portugal também pode ter 45% em risco de pobreza

Como tenho referido, é preciso ter algum cuidado no modo absoluto como se lêem as estatísticas, digo isto por uma razão muito simples: não há estatísticas absolutas. O que há é tendências, probabilidades, correlações, etc. Vem isto a propósito do critério estatístico que se estipulou para medir a incidência ou risco de pobreza: 60% do rendimento mediano nacional (por adulto equivalente). É um critério que se universalizou de certo modo e que tem a vantagem de permitir comparações internacionais. No entanto, mesmo utilizando esta linha diferenciadora, nem sempre os resultados batem certo ou, pelo menos, na mesma direcção. Três exemplos:
1) Segundo a análise de Carlos Farinha Rodrigues entre 1989/90 e 2000 a incidência de pobreza aumentou em Portugal: de 17,6% para 19,1% dos indivíduos (18,3% em 1995). Estes dados são diferentes daqueles que têm sido divulgados e têm por base os cálculos do autor a partir de microdados recolhidos dos vários inquéritos aos orçamentos familiares realizados neste período temporal, ver p. 175.
2) No relatório sobre a situação social europeia, os autores fazem uma série de cálculos para averiguar a incidência de pobreza nos países europeus utilizando o mesmo critério – 60% da mediana do rendimento disponível – mas, neste caso, tendo por base não a mediana nacional mas a MEDIANA EUROPEIA. Ou seja, todos os países são comparados a partir da mesma linha de pobreza, uniformizada em PPS (paridades de poder de compra). Usando este critério, observa-se que em 2004 a proporção de portugueses abaixo da linha de pobreza rondava os 45% (o 8º país em 25), muito à frente das percentagens da Grécia e Espanha (25% e 26%, respectivamente), ver p. 22.
3) Mas há mais, se considerarmos a linha de 50% do rendimento mediano europeu (em vez de 60%), Portugal ultrapassa a República Checa (subindo para a 7ª posição dos países mais pobres da Europa), aumentando ainda mais a diferença em relação à Grécia e Espanha.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Como não construir uma coligação anti-desigualdades?

O João Rodrigues escreve no 5 Dias um texto importante sobre a pobreza e as desigualdades. Fico satisfeito com a visibilidade dada à temática, mas não estou seguro que esta seja a estratégia certa de abordagem ao problema. Em primeiro lugar, falta alguma profundidade histórica ao cenário que o João apresenta, e não me parece que possamos colocar alguns factos como se eles pairassem no tempo (não entro nas explicações que o João não dá, nem pretende dar, porque o seu é um post mais de descrição do que de análise; mas não custava dizer que o nosso Estado social – tal como a democracia, sendo que os dois andam quase sempre de mão dada - para além de insuficientemente desenvolvido, é também recente, se o compararmos com os outros países europeus. A história é assim, não dá para voltar para trás - mas quando avaliamos o presente e projectamos o futuro, convém não esquecer o que, não podendo ser mudado, pesa de forma determinante na configuração do status quo).

Vamos ao que interessa: como o João argumenta, é verdade que a pobreza nos activos continua demasiado alta (19% em 1995; 18% em 2004), resultado dos baixos salários que produzem o bem anglo-saxónico fenómeno dos working poor (mais sobre esta questão, e como lutar contra este flagelo, esta semana neste blogue); que o rácio entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres, estando melhor em 2006 (6,8 (valor provisório)) que em 1995 (era de 7,4), já esteve melhor em 2000 (6,4); que o índice de Gini não ata nem desata; e que aumentaram as desigualdades salariais entre 1995 e 2005 (mas tal não espanta, dada a fraca cobertura dos mecanismos institucionais que deviam regular, de forma sistemática, esta área - e isto tende a piorar quanto mais a nossa economia se torna de 'serviços' e menos 'industrial').
(quanto à transmissão intergeracional da desigualdade de oportunidades, medida em função do peso do background social na entrada para o ensino superior a que o João se refere, e a que o Renato aludiu, e bem, aqui - e que não deixa de ser expectável tendo em conta que a sua massificação, comparando com a Europa, é recente/tardia; e aqui há o efeito do fortíssimo abandono escolar a pesar, que é onde se faz verdadeira selecção do sistema ao nível do ensino básico e secundário -, precisávamos se saber a sua evolução ao longo, por exemplo, da última década: o problema melhorou ou piorou? é a evolução do indicador, do ponto de vista das políticas, que é o fundamental)

O problema no texto do João Rodrigues é que eu duvido que um discurso quase-catastrofista nos leve muito longe; o mais provável é continuar a alimentar – e a ser, mesmo que inadvertidamente, cúmplice – (d)o fatalismo nacional do costume.

É que não basta referir a dimensão e relevância do problema da desigualdade e da pobreza – tão ou mais importante é mostrar que há, fruto de instrumentos políticos colocados em prática, algumas melhorias que não podemos e não devemos esquecer. Assim, o João refere que «em todos os indicadores pertinentes sobre pobreza e desigualdade, Portugal ocupa posições cimeiras nas tabelas da OCDE e da EU», mas não refere que o risco de pobreza global foi reduzido em 5 pontos percentuais em dez anos: de 23% em 1995 para 18% em 2004, o que corresponde a uma redução de 22% (= 500 mil pessoas); refere que «Portugal é um dos oito países da União Europeia onde se registam níveis mais elevados de pobreza nas crianças» (palavras da UNICEF), mas não refere que a pobreza infantil diminuiu de 26% em 1995 para 23% em 2004, uma descida de 3 pontos percentuais que corresponde a uma redução de 11,5%; refere que «desigualdade de rendimentos sobe entre a população idosa», mas não refere que o risco de pobreza dos idosos diminuiu de 38% em 1995 para 29% em 2004, e que segundo dados recentes estava em 26% em 2006, o que representa uma redução de 1/3 numa década, perante um passivo histórico sem nenhuma comparação com os nossos congéneres europeus (como se vê, esquecermos o passado dá imagens pouco lúcidas do presente).

Convém também não esquecer que boa parte deste período foi de lento crescimento económico (desde 2000), algo que torna mais difícil uma luta mais agressiva contra a pobreza e as desigualdades. Ao mesmo tempo, é preciso perceber o que se passou de 2005-2006 para cá. Por um lado, medir o impacto distributivo do considerável aumento do desemprego; por outro lado, o impacto das novas medidas de apoio aos idosos – em particular o Complemento Solidário para Idosos -, de apoio à família – os sucessivos aumentos do abono de família -, e aos trabalhadores – o salário mínimo. Estranharia – mais: seria contra o que sabemos do efeito de medidas políticas deste tipo - que estas medidas não tivessem um impacto redistributivo importante.

A questão, claro, é sempre: Isto chega? Não, não chega: é preciso fazer melhor, muito melhor. O problema é que é tudo muito lento, e se há avanços que não devem ser negligenciados – que 500 mil pessoas a menos abaixo da linha do risco de pobreza não é algo de somenos -, outros indicadores permanecem semi-congelados, enquanto outros mostram uma regressão (em particular, a nível salarial) que, mesmo que expectável, é uma regressão.

Mas o que também não chega é pintar um cenário em que nada parece ter mudado (ou, antes, que os únicos indicadores de mudança são negativos). É que, convém não esquecer, Portugal já gasta cerca de ¼ da riqueza nacional em políticas sociais. Queremos mesmo argumentar que isto não serve de (quase) nada?

Ora, não é assim que se constroem coligações. E sem coligações – em democracia é assim - não há políticas robustas e agressivas. E se há uma coisa que precisamos nesta área, é de robustez e agressividade. Pela enésima vez, e dado o pessimismo antropológico dos portugueses face aos problemas da pobreza, não nos enganemos no argumentário.

Em caso contrário, continuaremos encalhados naquilo que podemos chamar, muito apropriadamente, um “capitalismo de herdeiros”.

Argumentos para uma coligação anti-desigualdades

Terminei o meu último post a dizer que a luta contra as desigualdades - de rendimento, de qualificações, de recursos, de oportunidades, etc. - exigiria uma «coligação transideológica, transpartidária e que mobilize todos os parceiros sociais».
Sabemos que as desigualdades são más para quem perde com elas - tal como a pobreza é má para os pobres. Mas e se conseguíssemos argumentar que as desigualdades são más para o país - e que as elites económicas poderiam também ganhar, a prazo, com a sua redução? Pregar aos convertidos - os eventuais leitores deste blogue - não vale de muito. Mais importante mesmo era conseguir convencer os cépticos das boas bases da nossa posição.

A questão imediata é, naturalmente: «como convencer os actores sociais, mesmo os mais cínicos e os mais oportunistas, de que é do interesse deles uma redução das desigualdades? como evitar que ele raciocinem da forma oposta e mais comum: que para retormar o crescimento temos de sacrificar os níveis de relativa igualdade - mesmo que sejam internacionalmente tão baixos! - e deixar que o (alegado) trade-off entre igualdade e eficiência funcione a favor desta última?»

É importante deixar um elemento preliminar: existe muita literatura - e um consenso razoavelmente amplo entre economistas - que defende que níveis elevados de desigualdades nos países mais pobres são prejudiciais para o crescimento. Assim, as desigualdades e a pobreza elevada tendem: a provocar instabilidade social e macrofinanceira que impedem reformas promotoras de eficiencia (e redistribuição) que necessitam da existencia de cooperação e confiança entre as diversas partes; a provocar falhas nos mercados de crédito (impedindo o investimento e o empreendedorismo); a retardar o crescimento em áreas rurais, abandonadas pela população que procura as cidades, partindo o país ao "meio", etc. (uma análise mais extensa destes fenómenos fica para outra altura). Estes países estão como que 'encurralados' numa armadilha de pobreza e precisam de ser catapultados para trajectórias de crescimento sustentado. Se isso não acontecer - e abundam os exemplos, particularmente no continente africano -, os males de que padecem vão continuar a alimentar-se uns ao outros e a impedir o desenvolvimento.

Portugal é mais próspero do que os países que integram estes estudos e não podemos aplicar as mesmas análises e conclusões sem nuances importantes. No entanto, há bons argumentos para importar o mecanismo essencial. E não é, parece-me, preciso ser muito imaginativo. Vamos por partes.

1.º argumento => Partamos de um diagnóstico: «relativamente ao PIB é estimado que no espaço da União Europeia a elevação em um ano do nível médio de escolaridade se traduza no aumento da taxa de crescimento anual entre 0,3 a 0,5 pontos percentuais. Para Portugal, a OCDE (2003) estima que o produto poderia ter crescido mais 1,2 pontos percentuais por ano, entre as décadas de 70 a 90, se os seus níveis de escolaridade estivessem equiparados à média dos países da OCDE.»

Ou seja, o nosso défice de capital humano retarda o crescimento nacional - recuperar neste campo é essencial para o país. A teoria económica concorda com isto. As elites económicas também concordarão.

2.º argumento => As fortes desigualdades sócio-económicas e de qualificações, e os altos níveis de pobreza - dada a forma como medimos normalmente 'pobreza', estamos sempre a falar de desigualdades, mas coloco as duas a par para reforçar a ideia, perdoem-me o pleonasmo - dificultam muito o papel das famílias na criação de um ambiente familiar que promova o sucesso escolar das crianças; e dificulta o papel da escola e dos professores: o sistema educativo básico e secundário está desenhado para lançar os alunos para o ensino superior e para não valorizar, institucional e simbolicamente, as formações intermédias (como o ensino profissional), e pouco preparado para integrar e ensinar alunos que não aqueles automaticamente familiarizados com a cultura escolar (o que leva, como estratégia de segunda ordem, a que o corpo docente abuse da estratégia da retenção - que, a prazo, tantas vezes leva ao abandono da escola pelo aluno).

A(s) teoria(s) sociológica(s) concorda(m) com isto. As elites económicas também podem ser persuadidas a concordar.

3.º argumento, e síntese dos anteriores => As fortes desigualdades/pobreza retardam o crescimento económico pelas dificuldades que colocam sobre as famílias, sobre os alunos e sobre as escolas, contribuindo, indirectamente, para elevados níveis de saída precoce do sistema educativo. A saída precoce do sistema educativo bloqueia a transformação da estrutura de qualificações do país e não só impede a passagem para uma "economia do conhecimento" assente numa mão-de-obra com altas qualificações, como reproduz a resiliência de um tecido económico dependente de baixas qualificações/competências, na indústria ou nos serviços. Esta economia de baixas qualificações/competências alimenta-se (diria mais: depende) da saída precoce dos jovens do sistema de ensino, funcionando como um 'atractor' de alunos com fraco desempenho escolar, poucas perspectivas de futuro académico e desejosos da sua 'autonomia' (que conseguem com o 'primeiro salário') (na maior parte das vezes filhos de famílias que, auferindo poucos rendimentos, tendem muitas vezes a avaliar com bons olhos a saída precoce de um sistema que não é para "eles", e que mais vale eles "fazerem-se ao trabalho", capaz de trazer compensações financeiras imediatas).

Num mecanismo conceptualmente muito semelhante ao que os economistas analisam nos países mais pobres - aqueles com mais elevados níveis de desigualdade de partida apresentam taxas de crescimento mais baixas, e este crescimento fraco tem um impacto muito reduzido na redução da pobreza -, estamos perante uma armadilha (recentemente teorizada pelo economista radical Samuel Bowles e colegas no livro Poverty Traps), em particular a armadilha das baixas qualificações.

Resumindo: as desigualdades sócio-económicas contribuem para retardar o crescimento económico do país.

É preciso quebrar a cadeia que alimenta o equilíbrio que sustenta esta armadilha, agindo de preferência simultaneamente nos pilares essenciais: a escola e a família, mas também sobre as empresas, e as suas atitudes e práticas (em relação à formação profissional, por exemplo). Libertos da armadilha, os actores individuais e colectivos poderão usufruir das oportunidades institucionais existentes (por exemplo, a gratuitudade do ensino básico e secundário) e por melhorar/instituir (por exemplo, maior apoio financeiro aos alunos no ensino secundário, em particular os do ensino profissional; ou incentivos para determinados alunos, em particular os que mais melhoraram as suas competências ao longo da sua escolaridade, terminarem o secundário, conferindo-lhe créditos que podem ser usados para facilitar a sua entrada numa universidade (como propõe o já falecido sociólogo norte-americano James S.Coleman neste livro)) e contribuir para a formação do capital humano de que o país necessita. Todos beneficiariam.

O Estado (de investimento) social que apoiasse este processo de simultânea redução das desigualdades e aumento do crescimento funcionaria, na expressão do sociólogo sueco Walter Korpi, mais como um "sistema de irrigação" do tecido económico - a metáfora progressista - do que como um "balde que pinga" (isto é, que desperdiça recursos ao mesmo tempo que os transfere dos ricos para os pobres), na metáfora conservadora.

Quem quer ouvir a mensagem de que as desigualdades são más para o país?