quinta-feira, 24 de julho de 2008

Estado da arte

Este blogue vai entrar numa fase mais intermitente até final de Agosto. É isso mesmo! Vamos pôr os pensamentos de molho e em Setembro voltaremos com argumentos redobrados e reforçados. Não se esqueçam de regressar ao meio do dia (de preferência). Boas férias!

A economia mundial espera o seu novo Keynes

É assim que termina um artigo de Dani Rodrik, publicado na edição de hoje do Diário Económico (vale a pena ler). O economista discorre sobre a morte do consenso sobre a globalização. Deixo aqui este extracto: «Hoje em dia, a pergunta deixou de ser "é a favor ou contra a globalização?". A pergunta é "quais devem ser as regras da globalização?". Os campeões da globalização já não têm opositores jovens que arremessam pedras, mas sim outros intelectuais que arremessam argumentos».
Ora nem mais!

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Endividamento: irresponsabilidade familiar ou o impacto da desigualdade?

"Não estamos a falar de idosos, dos típicos desempregados, mas de pessoas com menos de 40 ou 45 anos que se calhar não deixam de pagar a netcabo nem desmarcam as férias na agência de viagens mas passam fome".
Manuel Lemos, presidente das União das Misericórdias Portuguesas

É este comportamento irracional? Muitos pensarão que sim. Infelizmente, a questão do endividamento das famílias quase nunca é analisada a partir da óptica das desigualdades. Quando o fazemos, o puzzle fica muito menos complicado. A explicação para as pessoas cortarem na comida porque não querem cortar na internet, nas férias, etc., é porque estes últimos são bens posicionais: o que conta é menos o que as pessoas possuem em absoluto e mais o que elas possuem por comparação ao resto da sociedade, em particular os grupos com os quais elas se comparam. Hoje, para muitos nas classes médias, é quase inaceitável não ter acesso à internet ou não fazer férias; seria vergonhoso não usufruir destes bens, porque toda a gente que "interessa" deles usufrui.

O problema das sociedades altamente desiguais (veja-se o padrão do endividamento das famílias no capitalismo anglo-saxónico, bem mais inigualitário do que o europeu [gráfico retirado daqui]), e onde as classes altas, com rendimentos elevadíssimos por relação à sociedade em que vivem, gostam de ostentar o seu luxo, é este: quanto mais alto elas fixam a norma, mais dinheiro as classes médias vão ter que gastar para não perder o seu lugar na hierarquia simbólica. O resultado é simples:
(1) maior endividamento dos indivíduos/famílias;
(2) no caso de ser necessário 'cortar' no consumo, este acontecerá no que pode ser mantido 'invisível' (por exemplo, a comida), mantendo aquilo que seria socialmente inaceitável perder aos olhos de outros (família, amigos, colegas, vizinhos, etc.).

Por isso, as palavras de Manuel Lemos (assumindo que o é dito é real e minimamente representativo do que se passa) não descrevem uma realidade povoada de agentes que perderem completamente o sentido das prioridades: o seu comportamento só pode ser realmente compreendido e julgado à luz do carácter posicional de um conjunto de bens que se tornaram simbolicamente centrais, e da dinâmica de desigualdade actual provocada pela "descolagem" dos mais ricos: uma desigualdade que não é má apenas para os pobres, mas também para as classes médias.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Círculos virtuosos

Numa sociedade onde a desconfiança e os baixos níveis de capital social têm tantas consequências negativas para o desempenho económico e para a equidade social (voltarei brevemente, como prometi, a esta questão), e onde os patrões parecem desconfiar tanto dos trabalhadores e vice-versa, iniciativas como a dos Empresários Pela Inclusão Social (EPIS) são bem interessantes. Mostra como podem ser criados círculos virtuosos pela acção conjunta de diferentes actores - com o apoio, mas sem a coordenação centralizada do Estado - com objectivos centrais para o país. Um largo grupo de autarquias já se associou aos projectos em curso, um dos quais visa colocar o referencial de escolaridade no 12.º ano, com particular incidência em zonas do país onde o insucesso escolar é bastante preocupante (como é caso do concelho de Paredes).

Este é o referencial para os alunos e escolas, mas para as empresas também. Este é um caso em que a persuasão e a cooperação entre empresários pode funcionar no sentido de elevar o capital humano dos trabalhadores - e talvez a EPIS acolhesse bem a excelente sugestão do Renato -, substituindo a concorrência no mercado por práticas associativas capazes de alinhar os interesses e práticas do patronato com os de outros grupos sociais.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Apenas uma ideia

Em tempos de crise como os que estamos a atravessar é hora do Estado e, mais propriamente, do governo se virar para o tecido produtivo do país. Não só se justificam medidas concretas para as pequenas e médias empresas (algumas delas até têm sido anunciadas nos últimos meses), mas, acima de tudo, exige-se uma estratégia geral que enfrente os problemas estruturais. Tenho vindo a focar uma das vertentes que me parece ser das mais gravosas: a composição débil da classe empresarial que apresenta um enorme défice de qualificação. Normalmente, aponta-se (e bem) o baixo nível de escolaridade dos trabalhadores como um dos principais factores do nosso atraso económico. Mas, esquece-se a situação, não menos problemática, dos empregadores. Dado o cenário, considero que seria interessante avançar-se com um programa geral de apoio às pequenas e médias empresas que enquadrasse a formação profissional dos empresários. Ou seja, fazer depender um conjunto de medidas de apoio financeiro (como as que têm sido postas em prática) – que incidem ou nos benefícios fiscais ou na redução controlada de juros aos empréstimos concedidos – da formação e qualificação profissional não só dos trabalhadores como dos próprios empresários. A economia portuguesa necessita de patrões com maior capacidade de investimento e, sobretudo, de inovação. Não há outra forma de dotá-los dessa capacidade senão apostar na sua qualificação. E para isso é fundamental a definição de uma série de deveres e de responsabilidades a partir de um contrato social (ou, se quisermos, a partir de um código de conduta empresarial).

terça-feira, 15 de julho de 2008

Sobre o 'endividamento das gerações futuras'

Uma das máximas do nosso tempo parece ser esta: «não endividirás as gerações futuras». (curiosamente, muitos dos que estão preocupados com a dívida pública e com as obras 'faraónicas' preferem ignorar o nosso legado ecológico.)

Este raciocínio é perigosa e injustamente míope. Esquece que a solidariedade intergeracional é uma estrada com dois sentidos. Por ela não viajam apenas aquilo que os nossos filhos vão ter que pagar, mas aquilo que lhes deixamos – e que eles não produziram, mas vão usufruir. Estamos habituados a pensar desta forma em relação às famílias, mas a mesma lógica também se aplica às sociedades/economias nacionais.

Para sermos mesmo rigorosos e quisermos que uma geração não pague as dívidas contraídas pela geração anterior, então temos de ser coerentes e impedir que ela usufrua da riqueza criada no passado. Assim, cada geração tinha que destruir tudo o que construiu/produziu para evitar que a geração seguinte usufruisse das auto-estradas, escolas, hospitais, bibliotecas, museus, descobertas e aplicações científicas, etc., etc. que a primeira construiu. Naturalmente, não devemos ignorar que as gerações futuras pagam sempre um custo de oportunidade: se as políticas que uma dada geração desenhou e implementou forem más e ruinosas, será a geração futura a pagar as suas consequências; se elas tivessem sido mais inteligentes e eficientes, a geração futura obterá os seus frutos. O problema é que aqui entramos numa lógica contrafactual mais complicada: e se tivéssemos feito X em vez de Y?

Depois, há coisas que 'não se pagam'. Por exemplo, a geração que nasceu imediatamente a seguir ao 25 de Abril (escreve-vos alguém que nasceu em 1976) beneficia de um bem público para o qual não fez nada para obter: um regime democrático.

Dualismo categórico II

Tinha reservado para um segundo post pegar na questão que deixo em aberto neste último. Já que o Hugo se antecipou não me resta senão avançar com algumas reflexões, mas de uma forma mais atabalhoada do que estava previsto. O problema que caracterizei como dualismo categórico, tem como reflexo a permanente e muitas vezes inconciliável conflitualidade negocial que resulta, em parte, de uma estrutura social na qual pequenos patrões e trabalhadores comungam de um conjunto de constrangimentos, o baixo nível de escolaridade é somente um deles: num outro post referi a precária situação socioeconómica de alguns pequenos patrões.
Em muitas comunidades rurais e periubanas a diferença ao nível dos estilos e modos de vida, dos processos de socialização, das práticas de sociabilidade entre os pequenos empresários e os trabalhadores assalariados não é muito acentuada, aliás, ela é mesmo muito próxima. Contudo, se, por um lado, a proximidade pode favorecer algum engajamento social no seio das comunidades. Por outro lado, essa proximidade - no acesso aos bastidores da vida social e profissional do outro (empregador ou trabalhador) - pode, ao mesmo tempo, provocar uma enorme desconfiança. Ou seja, num certo sentido, a proximidade comunitária e social pode ser indutora de maior distância ao nível das posições perante as relações de produção. Generaliza-se assim uma incapacidade em depreender para além do interesse individual limitado pelo ganho a curto prazo. Penso que este tipo de dualismo não é irresolúvel, mas integra alguns factores peculiares que devem ser considerados quando se apontam como horizontes a história e o percurso de outros países (mais a Norte).
Como tenho vindo a salientar, considero que o papel do Estado é decisivo, não só como mero regulador ou mediador, mas como agente capaz de constituir plataformas de negociação de maneira a gerarem e relançarem relações de confiança. Em certa medida, esse desafio passa por potenciar as redes comunitárias (e inter-comunitárias), de modo a que estas amparem e até resolvam algumas das rupturas vividas nas empresas. Ou seja, fazer com que as redes de proximidade social favoreçam a capacidade de negociação (laboral e não só) no sentido de perscrutarem o interesse mútuo (ultrapassando o mero ganho particular imediato). Essa capacidade depende, em parte, da localização da esfera pública, através da instituição de factores próprios de negociação e de participação (em articulação com escalas de organização regional e nacional). O problema de muitas destas comunidades resulta da completa ausência de um espaço público com a participação e o empenhamento de vários actores individuais e colectivos (sindicatos, associações patronais, autarquias, associações de desenvolvimento, associações culturais, etc.). Um espaço que desoculte dos bastidores as promíscuas e imprevistas conivências que geram rupturas sociais. Como já referi, esta capacidade implica uma alteração no modo de actuar das agências públicas. E, nesta questão, temos alguma coisa a aprender com certas experiências que se têm desenvolvidas em países situados mais a Sul.
O dualismo identificado em posts anteriores não é inultrapassável, mas é suficientemente categórico para nos obrigar a analisar esta realidade a partir de diferentes perspectivas que, em muitos aspectos, são mais complementares do que exclusivas. Deveremos retirar das ciências sociais essa capacidade.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Quando as instituições são mais importantes que a educação

O Renato tem escrito, e bem, sobre o défice de escolarização do patronato português. Parece-me essencial a identificação desta situação e a análise aprofundada desta variável, mais um (dos vários) problema(s) a nível estrutural que temos de ultrapassar. Mas parece-me ir longe demais transformá-la num alibi para o bloqueio acordos entre o capital e o trabalho e impeça estratégias corporatistas inteligentes.

1. Olhando para a história, dá para perceber o porquê da minha desconfiança do peso excessivo das qualificações dos patrões (atenção: falo do peso desta variável na dimensão da negociação e concertação social, não da modernização das empresas; aqui, concordo com o Renato, o capital educacional dos proprietários é muito importante). No passado, a escolaridade destes (e de sindicalistas) era também baixíssima: com toda a probabilidade mais baixa do que aquela que os nossos patrões apresentam hoje. Pensemos nas bases dos Estados sociais lançadas na Europa no último quartel do século XIX por essa Europa fora, ou nos acordos realizados nos anos 30 do século XX, ou no período imediatamente pós-1945. Nem os patrões nem os sindicalistas eram, por certo, altamente escolarizados. E, todavia, o corporatismo floresceu.
Inversamente, e ceteris paribus, nem um MBA ensina um proprietário/gestor a valorizar o diálogo social e os direitos sociais (não são as business schools embriões da ideologia neo-liberal?), nem a alta qualificação dos sindicalistas consegue ultrapassar questões de estratégia política definida por partidos (Carvalho da Silva é, tanto quanto sei, doutorado em sociologia, e isso não muda a estratégia da CGTP).

2. A questão aqui tem muito mais a ver, parece-me, com variáveis políticas e institucionalistas do que com variáveis cognitivas/educacionais: tem a ver com a estratégia política que determina centralmente o que os sindicatos devem fazer (negando a sua autonomia relativa); e tem a ver com uma série de factores estruturais da economia que influenciam decisivamente o comportamento dos parceiros sociais. Por exemplo, a teoria institucionalista mostra como a existência de centrais sindicais em competição directa provoca uma situação potencialmente desastrosa, originando uma corrida egoísta e irresponsável aos "direitos sociais", e a um contínuo esticar a corda independentemente dos efeitos que isso tenha na economia (porque tem naturalmente; por exemplo, não podemos aumentar o salário mínimo como nos apetece sem por uma larguíssima fatia do tecido económico com a corda na garganta); a somar a isto, esse efeito de competição e de reivindicação no limite irresponsável é reforçado se essas centrais sindicais cobrirem pouca parte da mão-de-obra: de novo, nenhuma delas tem incentivo para tomar em consideração o que acontece economia no seu todo. A mesma coisa acontece no lado do patronato: a concorrência entre confederações e fraca representatividade tornam mais complicadas as estratégias de concertação social e fornece incentivos a que, precisamente, parte dos patrões procurem "esticar a corda" para o seu lado.
A estrutura da nossa economia, com uma forte centralidade da pequena propriedade e a fraca capacidade de representaçao tanto do lado do patronato como do trabalho gera situações de dilema do prisioneiro e jogos de soma nula muito complicadas.

3. Mais ninguém tem interesse em valorizar - a sério, e não retoricamente... - o diálogo social do que os sindicatos. É fácil perceber porquê. A concertação social, ou seja, o mecanismo de voice, é um mecanismo de coordenação alternativo ao mercado. Se o trabalho conseguir unir-se e alcançar acordos com o capital, não ganha só ideologicamente («ora vejam, a economia de mercado funciona, e talvez melhor, através das instituições corporatistas, e não pela concorrência num mercado aberto!»), mas também estratégica e institucionalmente, reforçando a sua capacidade de gestão da economia nacional e mostrando ao capital que vale a pena usar os mecanismos de concertação e cooperação sócio-económica. Inversamente, se estes mecanismos não funcionarem ou forem sistematicamente desvalorizados pelo trabalho (ou parte dos seus representantes), o capital vai tirar as suas conclusões: «se não nos entendemos por aqui a bem, só nos resta uma alternativa: fazer pressão para 'neo-liberalizar' as instituições e as políticas». Situações de ausência de diálogo e/ou bloqueio corporatista são o perfeito convite para o capital perder a paciência e a confiança nas instituições não-mercantis. O resultado é um push em direcção ao neo-liberalismo. Onde a voice não resulta, a exit é a única estratégia.

4. Solução à vista? Não ganhamos nada em ser fatalistas. Mais: não nos podemos dar a luxo, sob pena de nunca alterarmos nada na nossa eficiência da nossa arquitectura institucional.
Primeiro, porque tanto o trabalho como o capital não são actores inimputáveis. Eles podem ser persuadidos de que há estratégias colectivas melhores e piores. O Governo (e outros actores individuais e colectivos, a começar pelos académicos interessados) pode e deve desempenhar esse papel mediador.
Segundo, quando os sindicatos e os patrões têm dificuldade em entender-se em sede de concertação social, ou são poucos representativos dos actores económicos do país, devemos procurar criar-se um espaço de negociação alternativo, que se articule com este nível nacional. Esse foi durante muito tempo o segredo da estratégia sindical alemã, um país, que, ao contrário dos países europeus mais pequenos, não conseguiu ao longo da segunda metade do século XX unificar a sua força de trabalho debaixo da DGB. No entanto, a sua performance económica e a legitimidade social do sindicalismo sempre aproximou a Alemanha do comportamento dos países pequenos. Como? Porque, à parte do nível de negociação nacional, os trabalhadores sempre tiveram 'voz' dentro das empresas ao nível dos conselhos dos trabalhadores. Não sendo 'dominados' pelos sindicatos com representação a nível nacional na DGB, estes espaços permitem tradicionalmente aos trabalhadores, em articulação com os patrões e com os sindicatos (a nível nacional), coordenar o esforço de ajustamento empresarial contínuo numa economia mais globalizada. Este sistema de representação dual é polivalente e flexível e, usado inteligentemente e com a cooperação patronal, permite encontrar estratégias de soma positiva.

Já agora, aumentar o poder dos conselhos dos trabalhadores é algo que, por cá, a revisão do Código do Trabalho procura fazer. Vai resultar? Não sei, vamos ver. (mas que a CGTP não goste é, parece-me, um sinal muito interessante: será esta uma luta antecipada entre os sindicatos e os conselhos de trabalhadores?...).

Mas de uma coisa estou certo. Ficar tudo na mesma não vai beneficiar os trabalhadores portugueses. É que convém não fazer como a avestruz e meter a cabeça debaixo da areia. Os nossos salários estão, em média, mais altos do que a nossa produtividade permitiria (por favor, leia-se o paper que Olivier Blanchard escreveu sobre Portugal: discutir o futuro sem ter em conta estes elementos é como estarmos a comentar filmes diferentes).
A questão não é se precisamos de fazer um ajuste de competitividade. É como o fazemos. Ou é a bem ou é a mal. A mal é através da estratégia de choque pelo contínuo desemprego e fragmentação das relações laborais, isto é, da desinflação competitiva, que leva a uma baixa progressiva dos salários em contexto de conflito social e ecónómico. A bem é a estratégia de contínuos acordos entre capital e trabalho, numa adaptação inteligente a um futuro muito difícil (como têm feito, por exemplo, os holandeses).

Errar, pela enésima vez, os passos a dar sairá muito mais caro às gerações futuras do que putativas obras públicas mastodônticas. E por favor não façamos um mau uso das ciências sociais, legitimando um determinismo excessivo que só desresponsabiliza os actores colectivos. A luta contra os determinismos é precisamente aquilo a que chamamos política.

O dualismo categórico

Acabou de sair este livro, 2º de uma trilogia sobre Portugal no contexto europeu. Gostaria de focar alguns dados apresentados no primeiro capítulo que faz uma comparação transnacional da estrutura de classes, incluindo os respectivos perfis educativos. A partir dos dados do European Social Survey (2004), os autores comparam 22 países europeus tendo por base a tipologia de classes na qual vêm trabalhando há vários anos. Por intermédio de uma simples análise de clusters verificamos que Portugal faz parelha com mais dois países (a Grécia e a Polónia), que se distingue pela sub-representação dos ‘quadros técnicos e de enquadramento’: em Portugal ronda os 14% face à média europeia que se cifra nos 25%. Por seu turno, este mesmo cluster identifica uma sobre-representação para o nosso país na classe dos 'operários' e dos 'trabalhadores independentes'. De salientar que segundo esta tipologia, a Espanha integra o cluster onde a proporção de quadros é mais elevada (a média deste cluster é de 30%, mais do dobro que o anterior).
No entanto, ao considerarem os factores de socialização, como a mobilização de recursos educativos (por intermédio de uma comparação do número médio de anos de escolaridade), os autores apresentam uma distribuição similar em clusters. Também aqui Portugal continua a acompanhar a Grécia e a Polónia, mas, neste caso, encontra-se numa situação ainda mais afastada em relação valores médios. Destaca-se pela negativa o valor obtido pela classe dos ‘empresários, dirigentes e profissionais liberais’, cuja média de anos de escolaridade se fica pelos 7,8, muito distante dos 13,3 anos obtidos pelo total dos países. Essa forte disparidade também sucede nos 'operários' (5 anos em Portugal face a uma média total de 10,2) e nos 'trabalhadores independentes' (5 para 9,5, respectivamente). Por outro lado, é na classe dos quadros e técnicos onde a média nacional se aproxima mais da europeia (13,9 para 14,4).

Este cenário reforça as tendências que temos vindo a focar neste blogue: em Portugal o problema de deficit de escolarização não é exclusivo das classes trabalhadoras (operários e empregados no sector terciário), ela atinge simultaneamente a classe dirigente e empresarial. Este factor fortemente dualista resultante de um modelo económico assente numa dupla precariedade - que não se restringe apenas aos baixos salários auferidos pelos trabalhadores, mas simultaneamente pela situação periclitante da actividade dos pequenos e médios empresários - é potencializador de conflitualidade social. Estando os vários agentes constrangidos a uma situação económica tão restrita, acaba por se estabelecer uma relação de forças quase directa na qual os parcos benefícios de uns se transformam em enormes desvantagens para os outros. Sendo a margem tão limitada, a capacidade de negociação entre os parceiros sociais facilmente se transforma numa guerrilha. Perante esta realidade complicada, parece-me que dificilmente (e infelizmente, digo) os sindicatos poderão assumir outra estratégia que não seja a defensiva, que passa pela recusa em perder direitos adquiridos. Sobretudo, porque ela assenta num pressuposto legítimo de desconfiança em relação à posição negocial, muitas vezes inconsequente, demonstrada pela situação socioeconómica instável dos patrões. Estamos assim perante um quadro atrofiante, na qual parece não haver resolução à vista.

Sindicalismos

«Sabemos que há uma correlação positiva entre a redução das desigualdades e a força do sindicalismo: é na Escandinávia que temos as menores disparidades e os sindicatos mais fortes. Com um forte peso do sector público e com fortíssimos sindicatos, as sociedades escandinavas, que estão entre as mais competitivas no actual contexto da globalização, evidenciam que, no mínimo, não há uma relação necessária entre o peso do Estado, a força das organizações sindicais e o bom funcionamento dos mercados (ainda que bastante regulados). Mais, quando comparamos as taxas de sindicalização da Europa (34,7) com o mundo inteiro (15,0) somos obrigados a concluir que há uma correlação positiva entre a robustez do sindicalismo e o nível de desenvolvimento económico, social e político.»

Estas linhas, publicadas por André Freire aqui, reportam-se a um facto importante. Importante mas parcial, porque se esquece o factor-chave. É que, no caso das prósperas e competitivas economias escandinavas, não se trata apenas de um sindicalismo "robusto". Trata-se de um sindicalismo social-democrata, e, precisamente, não comunista: falamos das Landsorganisationen sueca, dinarmarquesa ou norueguesa. Como são historicamente próximos dos social-democratas a DBG alemã, ou próximos dos trabalhistas a TUC britânica.

Em termos de estratégia política, de capacidade de penetração nas empresas, de representação dos trabalhadores, e de inteligência negocial em sede de concertação social esta variável faz toda a diferença. Naturalmente, os governos e as confederações patronais lidam com sindicatos social-democratas e com sindicatos comunistas de forma diferente.
Foi assim no século XX. Será assim no século XXI.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

O que se esconde por trás do ataque ao "eduquês" II

«O que o 25 de Abril fez aos filhos dos pobres foi tirar-lhes a única hipótese de eles poderem ascender socialmente».

Esta frase é extraordinária. Foi proferida, naturalmente, por Maria Filomena Mónica [MFM] na quarta-feira à noite na discussão pública do documento publicado pela SEDES [agudamente criticado aqui]. Ela é, também, de uma extraordinária irresponsabilidade intelectual. A socióloga (não era, há uns tempos, historiadora; ou biógrafa?) não é conhecida por se apoiar em estudos nacionais e/ou internacionais para justificar as coisas que costuma proferir em público. Em que trabalhos se apoia MFM para dizer isto? Ou eles existem - e gostava de saber onde, feitos por quem, e com que dados - , ou isto é demagogia fácil e conservadorismo em estudo puro.

Quanto à origem deste tipo argumentos, não é preciso ir muito longe. Nos anos 60, quando o governo trabalhista de Howard Wilson decidiu abolir as grammar schools, o que argumentaram os conservadores? Precisamente o que MFM afirma: que eram os pobres que iriam ficar a perder! O raciocínio é mais ou menos este: dantes, uma minoria - cerca de 15% - podia seguir cursos universitários. Quem era, aos 11/12 anos, seleccionado para integrar a elite da geração seguinte praticamente tinha o seu futuro garantido. Separado o trigo do joio, a entrada para este núcleo era sinónimo inequívoco de sucesso e poder - económico, profissional, político. Os "filhos dos pobres" que conseguissem passar esta barreira tinham abertas as portas da elite britânica para o resto da vida.

A questão, claro, passa por cima da problema essencial: é que a presença dos filhos dos working classes nesses 15% era incrivelmente diminuta. Quem conseguia entrar, claro, era um dos 'eleitos', mas a imensa maioria ficava com os horizontes profissionais e sociais imediatamente cortados aos 11 anos - uma espécie de sistema onde the winner takes it all. Este sistema era uma máquina de reprodução de desigualdades de oportunidade.

Alguém acredita que um sistema educativo como o que existia antes do 25 de Abril ajudava os "filhos dos pobres"? Isto é pura intoxicação ideológica.

ADENDA: Em directo na SICNotícias, MFM, questionada pelo jornalista José Gomes Ferreira sobre a situação da pobreza em Portugal, afirma que «não conhece bem o país», que não «sai muito de casa», e prefere não «responder a essa questão», num momento sublime da televisão portuguesa. Considero respondidas as minhas dúvidas acima colocadas. E reforço o que disse: esta conversa é pura intoxicação ideológica e resulta de uma completa irresponsabilidade intelectual.

terça-feira, 8 de julho de 2008

O que se esconde por trás do ataque ao 'eduquês'

«(...)[U]m país civilizado tem de garantir uma boa educação básica a todos os seus cidadãos (é isto que realmente significa a igualdade de oportunidades), preservando as universidades para as suas elites intelectuais. Aqueles que argumentam que uma expansão acelerada do Ensino Superior é um instrumento de democratização, ou de crescimento económico, estão a enganar-se a si próprios e, o que é pior, aos outros».

Estas linhas não foram escritas há 50 anos, mas em 2003 por Maria Filomena Mónica. Ilustram de forma exemplar a ideologia daqueles que têm um sério problema com a "escola para todos". Não é possível compreender o exercício a que a autora se entregou na passada semana nesse jornal de facção que se tornou o 'Público' sobre o exame de Português [muito justamente ridicularizado aqui] sem perceber que, se ela mandasse, o ensino superior seria monopólio de uma pequena elite. Dado que, felizmente, a situação não é hoje do seu agrado, a autora acha ridículo e inaceitável tudo o sistema do ensino actual produz.

Para ter uma ideia do que produz um ensino superior historicamente monopolizado pelas elites, basta atentar nos quadros seguintes, que mostram o prémio salarial que advém da posse de um diploma do ensino superior nos países da OCDE (Portugal está no segundo do dois quadros, retirados do Education at the Glance 2007; ver a última coluna All tertiary education). Portugal é, depois Hungria e da República Checa, o país onde este valor [179, tanto para os indivíduos entre os 25 e os 64 anos como para aqueles entre os 30 e os 44 anos; ensino secundário = 100] é o mais elevado. Pior do que isso: em nenhum país a qualificação inferior ao 12.º ano é tão penalizadora, dado que os indivíduos os 25 e os 64 anos nesta situação ganham, em média, apenas 57% dos que possuem o 12.º ano [com uma ligeira subida para 62% no grupo entre os 30 e os 44 anos].
Sendo verdade que a dispersão salarial não é explicada apenas pela dispersão das qualificações, em Portugal esta correlação é muito forte; do grupo da população entre os 25 e os 64 anos, em 2005 apenas 13% da população possuía um curso do ensino superior. Pior, na OCDE, só a Turquia, com 10%, e a Itália com 12%; a República Checa apresenta os mesmos 13% que nós [ver o terceiro quadro].

"Preservar as universidades para as elites", como advoga Maria Filomena Mónica, é a forma mais clássica que elites dispõem para reproduzir o seu poder económico, cultural e, em última análise, político. Não é de espantar que elas o defendam. Mas é, nos tempos que correm, a estratégia menos sofisticada e mais reaccionária. Olhando para estes quadros, qual é o "país civilizado" - que, segundo a autora, e retomo da citação anterior, «tem de garantir uma boa educação básica a todos os seus cidadãos (...), preservando as universidades para as suas elites intelectuais» - que faz o que Maria Filomena Mónica advoga?

A resposta é muito, mas muito simples: nenhum. Este país "civilizado" não existe. A única explicação é que ficou para trás na história - na segunda metade do século XIX, ou talvez na primeira do século XX. Depois, foi sempre a descer. Os filhos dos pobres saíram do «buraco onde nasceram» e entraram na escola. O fim da "civilização", portanto.

Estas "elites" não estão no país errado. Elas estão no milénio errado. Perdoem-lhes a indignação com que enchem, por sistema, as páginas do "Público".

A legitimação da reprodução social

Este livro, já referido anteriormente , tem uma parte dedicada à análise da pobreza persistente, ou seja, sobre aqueles que se declararam “sempre pobres” ao longo dos 6 anos considerados. Como seria de esperar em todas as variáveis os “sempre pobres” estão sistematicamente em desvantagem em relação aos “nunca pobres”. Embora se depreendam em alguns indicadores uma situação generalizada de privação. Por exemplo, nas condições de habitabilidade a realidade dos “sempre pobres” é particularmente dramática em relação a infra-estruturas de saneamento, mas noutros itens esta desvantagem não é tão acentuada face aos “não pobres”, designadamente, na posse de aquecimento adequado da casa (que é genericamente insuficiente). «Esta circunstância parece indicar que as privações assinaladas não têm a ver apenas com a pobreza, mas configuram deficiências estruturais da sociedade portuguesa» (p. 131).

Um outro ponto interessante do estudo aborda a situação dos working poor. Assim, para além da relação observada entre baixos salários e a saída precoce do sistema de ensino, identifica-se uma forte reprodução geracional ao nível da escolaridade. Isto é, tende a perpetuar-se um ciclo vicioso (abandono escolar, baixa qualificação e baixos salários) que se vai repetindo de pais para filhos.
Particularmente interessante e revelador é também a informação sobre a percepção subjectiva da pobreza e, principalmente, este dado sintomático: «(…) em um em cada três casos persiste uma perspectiva culpabilizante da própria população pobre, associada essa condição à preguiça/falta de força de vontade das pessoas» (p177).
Perante este cenário - em que os mais desprotegidos tendem a naturalizar a sua situação vulnerável face aos sistemas sociais e económicos vigentes - como se poderá agir politicamente?

segunda-feira, 7 de julho de 2008

A importância da confiança

Este pequeno livro - La Société de Défiance, de Yann Algan e Pierre Cahuc - ganhou o prémio de melhor livro de economia de 2008 em França. A partir da respostas a inquéritos internacionais realizados nas últimas 3 décadas em vários países do mundo, trabalha a questão de como os níveis de confiança interpessoal e entre as pessoas e as instituições se interligam com questões mais vastas de desempenho económico. O resultado final era esperado, mas a coerência dos dados não deixa de espantar: a desconfiança nas instituições públicas e políticas, e económicas tem custos enormes para a governabilidade, para o crescimento e para a possibilidade de levar a cabo políticas redistributivas. Se no caso da ausência de confiança nas primeiras é uma questão mais tematizada, no caso do impacto da desconfiança no funcionamento das instituições económicas é menos conhecida. Mas ela é essencial. E o que assusta mais é a proximidade de Portugal do caso francês em quase todos os indicadores. Nos próximos dias vou tentar explorar um pouco esta questão, mas para já fica uma amostra.

Por exemplo, veja-se a posição de Portugal na primeira figura (clickar para aumentar), onde aos baixos níveis de confiança se soma o receio da concorrência económica. Não espanta, por isso, que esta situação leve a pressões para que o Estado intervenha no sentido de sobre-regulamentar questões centrais para o desempenho económico e para competição, como o número de procedimentos necessários para criar uma empresa (segunda figura)* - que é uma forma de proteccionismo das empresas já estabelecidas num dado mercado, indicador de como o Estado é cooptável pelos interesses hegemónicos num dado campo.
A ausência de confiança e o o excesso de normas na área económica correlacionam, é também natural, negativamente com a ausência de institucionalização do diálogo social, a começar pelas fracas taxas de sindicalização (terceira figura). Isto gera mercados de trabalho excessivamente regulamentados, onde a fraca presença dos sindicatos é o outro lado da ideia de que é a lei que protege o trabalhador (o que esquece que se não há capacidade para assegurar a efecitva aplicação da lei - coisa que ninguém faz melhor do que os sindicatos -, esta não vale de nada, ficando o trabalhador à mercê do arbítrio patronal). E mercados de trabalho excessivamente regulamentados correlacionam com uma fraca generosidade nas condições e montante do subsídio de desemprego, essencial para a securização dos percursos profissionais e para a aceitação da e adaptação à mudança gerada pela introdução de novas tecnologias e pela instabilidade dos mercados (quarta figura).

O mais interessante na análise dos autores é o papel negativo do Estado na reprodução desta situação de "desconfiança generalizada" (daí o subtítulo do livro: Comment le modèle social français s'autodétruit?). A sua acção é essencial também para discutir temas que têm sido afloradas neste blogue pelo Renato, como a questão do centralismo/autonomia, ou da embededdness. A coerência deste quadro de elementos não pode deixar de impressionar.
Matéria para outros posts.

* Medidas recentes como a 'Empresa na Hora' melhoraram consideravelmente a situação de Portugal neste capítulo.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Orçamento participativo, porque não?

Voltando à questão da via (esgotada) do centralismo e do papel do Estado como um agente impulsionador de novas dinâmicas económicas e sociais, gostaria de reflectir um pouco sobre aquilo que alguns autores têm designado como processo de localização e aprofundamento da democracia. Não se trata de mais um delírio ou feitiço esquerdista. Aliás este debate está cada vez mais no centro das reflexões sobre a reforma do Estado Social. Do meu ponto de vista, a ideia (em que venho empreendendo) de um Estado propulsor tem na sua base precisamente a questão do aprofundamento da democracia, que em grande medida passa por essa capacidade de localização da mesma. Ou seja, a ideia de que parte dos problemas locais e regionais devem ser resolvidos ao nível dessas mesmas escalas, implicando, para o efeito, a participação e a responsabilização das populações. Não se trata de esvaziar o papel do Estado, como desejam alguns sectores da direita liberal que defendem um comunitarismo completamente desligado do Estado. Nada disso! O que se propõe é um Estado parceiro que pela via institucional seja capaz de induzir novas capacidades (no sentido de Amartya Sen) nas populações de modo a se apropriarem dos seus próprios desígnios locais. Como defendem alguns autores, este processo passa necessariamente por uma politização da democracia, em que as decisões políticas ao invés de serem impostas hierarquicamente (de cima para baixo) são definidas implicando a participação de múltiplos actores locais, mas sempre enquadradas numa plataforma jurídica e normativa ancorada nas instituições do próprio Estado.

Os Orçamentos Participativos (OP) são um exemplo interessante neste âmbito. Depois de ultrapassada uma fase inicial de alguma experimentação aliada a um certo folclore político, a prática dos OP está a entrar numa etapa de maior maturidade, que se vem disseminando por diversas zonas do Mundo, deixando de ser um instrumento político exclusivo dos países em vias de desenvolvimento. O facto de deter um âmbito necessariamente local, favorece a sua maleabilidade, pois, tem sido desenvolvido tanto em cidades como em zonas rurais. Sendo dinamizado sobretudo pelas diversas instituições de poder local (regiões, prefeituras, autarquias, juntas de freguesia…). Isto é, o OP representa um instrumento efectivo de ‘agencialização’ por parte do próprio Estado, na medida em que reforça a sua ligação com as populações implicando-as no processo democrático e atribuindo-lhes um certo poder de monitorização e de responsabilização. O OP pode deter diferentes configurações: ser um processo consultivo ou deliberativo; ser alargado a toda a população e/ou só a organizações e associações; a dimensão orçamental que é colocada à participação pode ser definida à partida ou não; pode ser um orçamento temático ou sectorial; pode ser criada uma estrutura de controlo e monitorização; etc.
Em Portugal já existem cerca de 20 experiências auto-designadas de OP, penso que é um caminho interessante a percorrer e que pode resultar se for implementado com adequação. Talvez se justificasse uma previsão regulamentar no quadro legislativo nacional. Para mais informações sobre OP ver aqui.

Correndo o risco de ser repetitivo...

Quem leu o "Jornal de Negócios" de quinta-feira na Internet encontrou esta notícia:

Jovens portugueses são dos que levam mais tempo a encontrar emprego
Em média, um ano depois de terminarem a formação escolar, 71,5% dos jovens portugueses ainda não conseguiu encontrar o primeiro emprego, revela a OCDE. E cinco anos depois de concluírem o ciclo de estudos, em média, 34,1% permanece sem colocação no mercado de trabalho. Estes números colocam Portugal entre os países onde a juventude mais tempo demora a encontrar emprego, a par com a Grécia.

Mas não leu provavelmente o mais importante, que só vem na versão em papel, no parágrafo seguinte:

Os jovens com maiores qualificações têm, ainda assim, maior facilidade nesta transição das universidades para o mercado de trabalho, revela o estudo. Em média, 34,1% dos universitários está desempregado ao fim de um ano, uma percentagem que baixa para 6,4% ao fim de 5 anos de conclusão da universidade. E as dificuldades aumentam para quem abandona os estudos mais cedo. Cerca de 86% dos jovens menos qualificados continua sem emprego 12 meses após a saída da escola.

A saída precoce do sistema educativo tem um preço individual - mas também colectivo - muitíssimo alto...

quinta-feira, 3 de julho de 2008

O 'monstro'

Há pelo menos um quarto de século que a área da saúde, a par das pensões - e antes da 'globalização' entra na moda -, é vista como o monstro que vai arruinar o Estado social. Como escreve Vasco Pulido Valente semana-sim-semana-sim, nós - isto é, os europeus - não podemos pagar "isto". "Isto" é o Estado social, e por consequência a saúde, um dos mais pesados "luxos".

Esta posição substima a inteligência reformista dos sistemas políticos, e a capacidade para aprender e fazer as correcções de trajectória necessárias. A primeira figura mostra precisamente este processo desde o virar do milénio; a meio da presente década, o aumento das despesas com o sector da saúde passou a ser a inferior ao crescimento económico, de forma a garantir a sustentabilidade dos sistemas nacionais. Por outro lado, quem está literalmente com dificuldade para pagar as contas são milhões de famílias norte-americanas (ver segunda figura) que, para parafrasear Rui Ramos, um dia acordaram e viram que tinham que vender a casa para pagar uma qualquer operação de médio risco.


No fundo, nada disto é estranho: o que se passa nos EUA é o que se aprende, como bem lembra Paul Krugman no seu último livro (cap.11), numa cadeira introdutória de economia da saúde.

O que é preocupante é ver Portugal cada vez mais à esquerda na segunda figura, solidamente instalado no grupo dos países que têm sistemas mistos bismarckianos (França, Alemanha, Suíça) e que saem por norma mais caros que do que os públicos beveridgianos, que é o modelo do National Health Service britânico, no qual o sistema portugues se inspirou de perto. Pois bem, veja-se onde está o Reino Unido e onde estamos nós. A diferença não está sequer nos gastos públicos, mas no que os portugueses precisam de gastar do seu próprio bolso para terem acesso aos serviços que estão integrados no sistema britânico.

1929-1973

«Um dia adormecemos em 1929, no outro acordámos em 1973. Com os preços dos combustíveis e dos alimentos a subir», escreveu Rui Ramos no "Público" de ontem, quarta-feira.
Interessante visão da história. Interessante e muito selectiva. A minha preferida visão do que se passou entre 1929 e 1973 é mais ou menos esta.




Os quadros mostram a parcela de rendimento do decil mais rico num grupo de 6 países anglo-saxónicos e num grupo de 4 países europeus. Comparem os valores de 1929 com os de 1973.
Foi isto que se passou enquanto alguns andaram a dormir entre estas duas datas. Quando acordaram, procuraram imediatamente voltar para trás na história.

Os quadros estão disponíveis aqui, neste artigo de Anthony B.Atkinson e Thomas Piketty, "Towards a unified data set on top incomes", in Top Incomes Over the Twentieth Century : a Contrast Between Continental European and English-Speaking Countries, Oxford: Oxford university press, 2007, p. 531-565 [cap. 13].

quarta-feira, 2 de julho de 2008

A questão económica

Queria retomar a reflexão iniciada nuns posts mais abaixo - que foram literalmente afundados por uma enorme torre de Pisa :) - sobre a questão económica das desigualdades sociais (e da pobreza). Neste livro acabadinho de sair, coordenado por Alfredo Bruto da Costa, o autor salienta no capítulo final que o problema da pobreza não se resolve apenas com medidas redistributivas. «O problema reside, além do mais, na repartição primária do rendimento, da propriedade e do poder. Quando se realça o papel da repartição primária do rendimento, quer-se dizer que, antes de ser problema de políticas sociais, a pobreza é um problema de política económica» p. 197. Esta citação é suficientemente peremptória para lhe darmos alguma credibilidade, sobretudo, porque culmina um elaborado percurso analítico que utiliza, ao longo do estudo, diferentes dados estatísticos muito consistentes e bem artilhados.
Na curta vida deste blogue, tenho chamado a atenção para este aspecto: existem factores estruturais da nossa vida económico que se não forem alterados nos próximos anos, comprometerão grande parte dos resultados de certas políticas sociais e laborais que têm sido traçadas. A questão económica passa essencialmente por um modelo assente em pequenas e médias empresas geridas por empresários pouco qualificados e, em muitos casos, sem qualquer capacidade económica de investimento, que fazem depender a perpetuação da sua actividade da contratação de mão-de-obra barata e pouco qualificada. De entre os inúmeros indicadores referidos no estudo em causa, talvez o que me tenha surpreendido mais foi o que identificou cerca de 23% de vulnerabilidade à pobreza no grupo dos directores e dirigentes de pequenas e médias empresas. Outro dado: dentro desta categoria quase 70% não tem mais do que o 2º ciclo de escolaridade. Estes valores, representam, quanto a mim, um dos indicadores de alerta mais perenes da economia portuguesa, como tenho frisado em vários posts.
Segundo o estudo o grande problema da pobreza em Portugal tem a ver com os baixos salários, e não tanto com a questão da precariedade contratual. De facto, na maior parte das situações estas duas dimensões nem estão associadas: 71% dos representantes dos agregados pobres (entre 1995 e 2000) eram trabalhadores por conta de outrem e tinham (sublinhe-se) contrato permanente. Este dado é extraordinariamente revelador sobre o estado da economia portuguesa: o acesso ao trabalho (independentemente de ser precário ou não) não só não resolve a questão da pobreza como está intimamente associado a esta.
Como referi noutro post, os dados assim o indicam, existe uma forte reprodução entre a situação precária (económica, social, de qualificações) das pequenas e médias empresas - e respectivos dirigentes - e a dos trabalhadores que auferem baixíssimos salários. Perante este cenário, parece-me, como bem referem os autores, que a incidência nas políticas sociais não só é claramente insuficiente, como pode contribuir, em parte, para a perpetuação do próprio sistema. Urge então pensar-se em políticas económicas em paralelo com as políticas redistributivas. Políticas que, como é salientado no final do livro, intervenham ao nível da propriedade e da repartição do poder.

O problema com a "escola para todos"

A multiplicação de textos e contra-textos com números em excesso nos últimos dias deve ter tornado a compreensão do tema em discussão, naturalmente, um pouco opaca. Vale a pena fazer um ponto da situação.

1. Portugal produz bons alunos (estou a falar da literacia científica, mas a situação é em tudo semelhante nas áreas da matemática e da leitura), com uma boa média no ano modal - mas produz menos excelentes alunos do que os outros países (como bem apontou o Luís Pedro, e o João sublinhou - ver figura).

Resta saber porquê - mas não se invoque o argumento de que este é o resultado inevitável de o nível geral ter "baixado", porque a maioria dos outros países tem mais alunos excelentes e menos alunos fracos do que Portugal. A obtenção da excelência e a redução dos alunos fracos não são, longe disso, objectivos incompatíveis - a quase todos os países cumprem-no mantendo, imagine-se (!), a grande maioria dos alunos no mesmo ano de escolaridade.
Resumindo o que se passa na maioria dos países: mais alunos excelentes <-> menos alunos fracos <-> grande maioria dos alunos no mesmo ano de escolaridade. O oposto de Portugal, portanto, o tal sistema "faciliista".

2. Que um aluno com o mesmo nível fraco na Noruega esteja 3 anos à frente do aluno português não pode deixar de levantar sérias interrogações sobre o sistema e as práticas que originam esta situação. Que um aluno seja, em Portugal, sistematicamente sancionado com um retenção quando noutros países passaria de ano e receberia apoio extra não pode ser ignorado como se fosse a natureza das coisas, porque não há nada natural aqui. Argumentar que isto são práticas para melhorar as estatísticas é passar ao lado tanto do diagnóstico problema como da procura da solução. Os que acham que impera o "facilitismo", e que o sistema caminha para o "abismo", e os que saltam da análise séria do que sabemos (ou devíamos saber) do seu funcionamento para o domínio do insulto têm a obrigação de nos explicar porque e em que é que o nosso sistema é "facilitista" - comparado com os outros sistemas europeus, porque, claro, será sempre facilisita comparado com aquilo que provavelmente gostavam que, idealmente, a escola fosse (ver os pontos seguintes).

3. Quando o paroquialismo e o conservadorismo dão as mãos, o resultado não pode ser bom. Quanto ao conservadorismo, talvez não possamos fazer muito. Quanto ao paroqualismo, podemos sempre aprender com o que acontece noutros países. Como em tudo, não há como o método comparativo para nos ajudar a perceber as possíveis causas dos fenómenos. O advento da "escola única" que resulta da unificação do secundário inferior e da abertura a todos do secundário superior é, na Europa, afinal de contas, o resultado de uma história recente e politicamente sinuosa e difícil. A escola para todos e não apenas para os filhos da elites, que sempre usaram o argumento do "facilitismo" e do "fim da civilização" para separar as suas crianças das da turbe, garantindo entretanto as rendas cognitivas, profissionais e salariais que o acesso altamente selectivo à escolaridade longa lhes proporcionava, viu a luz do dia mais depressa nos países do Norte da Europa, fruto de reformas progressivas ao longo nos anos 50 do século XX. Em Inglaterra, as grammar schools, que até meados dos anos 60 só aceitavam 15% das crianças de cada coorte, nunca desapareceram por completo, embora a reforma de 1964 do governo trabalhista de Harold Wilson tenha iniciado o movimento compreensivo que procurava fazer aquilo que os suecos haviam já conseguido (e os noruegueses estavam a fazer ao mesmo tempo): colocar todas as crianças na mesma escola, com acesso aos mesmo recursos e (em teoria, pelo menos) oportunidades. Em França, o mesmo movimento começou em 1959, reforçou-se em 1975 com a reforma Haby, mas só se cumpriu na plenitude no início dos anos 80. Até lá, a segregação que era feita às portas do sistema continuou a ser feita no seu interior, com a orientação o mais cedo possível, ainda no secundário inferior, aos 12/13 anos, para fileiras práticas. Na Alemanha, Áustria e na Suíça, note-se, o sistema unificado não existe ainda hoje sequer: o sistema dual continua a separar as crianças aos 11/12 anos e a colocá-las em troncos diferentes do sistema.

4. Este elemento é, parece-me, muito importante: tudo isto é muito recente; tirando as mais precoces reformas suecas, em nenhum país o modelo da escolas de massas tem meio século de vida. E tudo isto é muito polémico: ninguém gosta de perder privilégios - ainda por cima simultaneamente cognitivos, culturais, profissionais e salariais -, e as elites que guardavam a escolaridade longa para si perderam, naturalmente, o monopólio da escola enquanto símbolo de distinção. As controvérsias ideológicas recorrentes em torno do "facilitismo" e do "fim da civilização" (como certos comentadores gostam de dizer) só enganam os mais distraídos. Claro, hoje são mascaradas de algum verniz pedagógico e da luta contra as "novas pedagogias" (o tal "eduquês"). Noutros tempos, pelo menos, havia mais frontalidade: "as crianças não têm todas o mesmo QI", "nem todas servem para 'o mesmo'", "elas querem é ir trabalhar", ou, como nos EUA antes da extraordinária decisão do Supremo Tribunal dos EUA em Brown v. Board of Education em 1954, "elas não são da raça do meus filhos".

5. Os sistemas são muito resilientes e mudam muito lentamente - em particular porque o que os faz funcionar no dia-a-dia de forma orgânica são práticas individuais e colectivas que são verdadeiras convenções, e por isso ainda mais difíceis de reformar e regular, e que transportam poderosos preconceitos e resistências ideológicas e cognitivas. A questão do uso massivo da retenção em Portugal, que até há pouco tempo ninguém parecia questionar, tem, naturalmente, uma história longa, em particular nas sociedades cujos sistemas mais dificuldade se tiveram em adaptar à escola para todos. Hoje, é mais fácil olhar para trás e vê-la como um efeito da dificuldade em aceitar os novos públicos dentro do sistema e um indicador claro do prolongamento de práticas segregacionistas. Por exemplo, a França, onde a reforma do sistema demorou um quarto de século (!) a completar-se, é um caso típico de uso generalizado da retenção nos anos seguintes à introdução das medidas mais progressistas (até há bem pouco tempo era um problema tão grave como em Portugal, embora a sua dimensão tenha sido reduzida nos últimos 10/15 anos). Onde, por decisão política, se abria a escola a todos, a retenção impedia, quase imediatamente, que isso se verificasse na prática. Assim, neste livro que alguém devia traduzir urgentemente para português, Eric Maurin (o mesmo autor destes dois excelentes livros) observa que, com a reforma Haby - ministro de um governo de centro-direita, convém recordar - em 1975:

«o objectivo fixado pelo Ministério era o de instituir um tipo de estabelecimento onde a pedagogia se adaptasse à diversidade dos alunos*. No plano dos factos, o uso massivo da retenção permitiu continuar a orientar uma parte importante dos alunos para a aprendizagem para vida activa desde o sétimo e o oitavo ano de escolaridade, antes mesmo que terminassem o primeiro ciclo do ensino secundário [...] A taxa de atraso escolar é de 60% no sétimo ano para a geração de 1965: no caso francês, repetir não era a excepção, mas a norma, e um outro sinal da muito forte reticência do collège francês a adaptar-se a novos públicos». [p.106-107]

*Como se vê, a «pedagogia que se adapte à diversidade dos alunos» não é, originalmente, nenhuma "ideologia romântica". É apenas a pedagogia necessária a uma escola para todos, que integra alunos muito diferentes. Tão simples quanto isso. A obsessão contínua e irracional com o "eduquês" é, cada vez mais me convenço, uma incapacidade de aceitar o projecto da escola para todos.

terça-feira, 1 de julho de 2008

De novo, o PISA - e porque é que a questão da retenção é tão importante II

Para dar um exemplo do que quis dizer no post anterior relativamente à diferença entre o score do um dado aluno e o ano em que ele está inscrito, podemos observar no quadro o valor médio dos 5.º, 10.º, 25.º, 75.º. 90.º e 95.º percentis da literacia científica do PISA2006 (países da OCDE - tabela que pode ser obtida aqui)



Comparemos um aluno português com um aluno norueguês no 5.º percentil, com scores médios de 329 e 328, respectivamente. Com este score, o aluno português frequenta com toda a probabilidade o 7.ºano de escolaridade, enquanto o norueguês (na Noruega 99% dos alunos estão no ano modal, que é o 10.º, como cá) está no 10.º ano. O aluno português, apesar de ter um score superior ao do seu colega norueguês, corre um risco sério de não chegar ao fim da escolaridade obrigatória, porque já foi retido 3 vezes. O aluno norueguês revela dificuldades de aprendizagem, sim, mas já terminou a escolaridade obrigatória, e está provavelmente inscrito numa via profissionalizante do ensino secundário, que o equipa com uma qualificação importante para o mercado de trabalho. Este é um horizonte muito mais difuso para o português - ainda faltam 5 anos de uma experiência escolar até aqui marcada pelo insucesso constante. Conhecendo as estatísticas portuguesas de abandono escolar, a probabilidade que ele lá chegue é muito baixa.

A dualização no caso português não se verifica, pois, tanto em termos de scores (a diferença entre o 5.º e o 95.º percentil é provavelmente das menos elevadas do conjunto dos países aqui listados), mas de níveis de escolaridade. É por isso que a questão da distribuição dos alunos pelos anos de escolaridade é muito importante.

Apetece dizer que, para valores idênticos/semelhantes, o sistema português tem uma preferência para a retenção - enquanto os outros países têm uma preferência para deixar o aluno seguir. Qual é aqui, afinal de contas, o sistema 'facilitista'?

De novo, o PISA - e porque é que a questão da retenção é tão importante

O Luís Pedro respondeu ao meu segundo post sobre o PISA. Agradeço ao Luís pela persistência das suas dúvidas, uma vez que me permitem explicar melhor o que queria dizer desde o início.
Estatisticamente falando, o que o Luís afirma no seu post é correcto. Mas ele ignora duas coisas essenciais.

[A] O contexto inicial desta discussão, que começou a partir das críticas do suposto 'facilitismo' e do 'nivelamento por baixo' do nosso sistema de ensino, e sem o qual não conseguimos compreender os dados que apresentei.
O que quis dizer, em primeiro lugar, e repito, é que - e o post inicial reporta-se à matemática - a média obtida pelos alunos no ano modal «seria impossível se o ensino da matemática estivesse a ser assaltado por um qualquer 'nivelamento por baixo'».
Segundo, se o sistema está a deixar alguém mal, não são os muito bons alunos, que têm resultados bastante razoáveis, mas os alunos fracos.
Terceiro, eu não estava tanto a fazer um elogio do sistema, mas mais uma crítica: o sistema deixar ficar mal precisamente aqueles que mais devia ajudar e que mais necessitam dele. Temos um problema de dualização, ou o de nivelamento não por baixo, em baixo.
Quarto, o post - e um outro de forma mais explícita - questiona a eficácia do sistema na tentativa de resolução deste problema, em particular a estratégia generalizada de reter os alunos em dificuldade.

[B] Luís falha na compreensão de como a questão do ano modal vs. ano atrasado é mais relevante do que a diferença dos valores entre, por exemplo, o 5.º ou 95.º percentil.
Dou dois exemplos de como o Luis pode estar correcto do ponto de vista estatístico mas falha na discussão política e pedagógica mais ampla.

1) Por exemplo, o Luís escreve:
«Não estou a dizer que me espantaria de descobrir que Portugal é muito desigual. Somente, que não é isso que dizem estes dados.»

O Luís tem razão na medida em que, para medir com exactidão a desigualdade entre os melhores e os piores alunos, teríamos que mobilizar a diferença, por exemplo, entre o 5.º e o 95.º percentil. Mas o problema é que isto ignora o poderoso impacto da retenção na carreira do aluno e no seu futuro. Imaginem dois alunos com, por exemplo, o mesmo score de 460, um sueco e um português. A probabilidade do aluno sueco estar no ano modal é superior a um aluno português. Por isto, e na medida em que estar um (ou dois, ou mais) ano(s) atrasado aumenta a hipótese de abandonar a escola sem completar a escolaridade obrigatória (ou o secundário), o português está colocado numa posição objectivamente inferior ao do aluno sueco.

Uma analogia interessante é com o conceito de "paridade de poder de compra". Imaginemos que este 460 não é o valor do resultado no teste do PISA, mas que estamos a falar de euros num dado 'mercado escolar'. Porque o aluno português tem uma probabilidade objectiva de vir a ter menos sucesso - escolar, e quase por definição profissional - que o seu colega sueco, os 460 'euros' do aluno português valem menos no 'mercado escolar' do que os 460 do colega sueco, que, estando no ano modal, tem mais probabilidades de completar o escolaridade obrigatória (ou o ensino secundário). O ano em que se está 'vale' mais do que o valor do score.

Ou imaginem dois pares de alunos, um sueco e um português. Imaginemos que a diferença entre os alunos é idêntica: o melhor tem 520 e o segundo tem 460, por isso uma diferença de 60 valores. Agora imaginem que o pior aluno português está um ano atrasado (ou mais) e o melhor aluno está no ano modal, enquanto que ambos os alunos suecos estão no ano modal. De novo: a desigualdade é maior entre o par português do que entre o par sueco, porque um aluno retido é um aluno com maior probabilidade de abandonar precocemente o sistema.

É por isso que o meu argumento inicial continua, parece-me, a ser válido: a separação dos alunos em anos de escolaridade diz-nos mais do que a diferença de scores entre o topo e a base.

2) O Luís pergunta: «Imaginemos que, no dia anterior ao exame, a ministra decretava que todos os alunos que estavam atrasados subiam um ano por passagem administrativa. A nossa média global ficava a mesma, o nosso score modal descia e diminui a diferença entre ambos. Havia menos desigualdade entre alunos?»

A resposta é sim: se todos os alunos ficam no mesmo ano, este facto reduz, por si só, a desigualdade entre eles. Mas o real problema é achar que a resolução para os maus alunos estaria num sistema de passagens administrativas sem qualquer outra alteração no sistema (e isto é uma questão recorrente nos comentários críticos do meu post) - e que não é possível melhorar o score dos piores alunos, fazendo-os estar no ano certo, mas com scores mais elevados. Isto assume erroneamente que o sistema é, neste momento, 100% eficiente, e que a única forma de melhorarmos o desempenho dos alunos muito fracos é arranjar um "truque" administrativo. Bom, isso não melhoria a média, seguramente! Mas essa não é a questão, e olhá-la desta forma revela a miopia com que o problema é habitualmente colocado, porque assumimos que:
(1) o sistema está a carburar no máximo,
(2) as escolas já fizeram uso de todas as boas práticas conhecidas para evitar que os alunos fracos continuassem fracos ao longo da uma carreira escolar que já leva 10 anos, e
(3) os alunos já atingiram o máximo das suas 'capacidades'.

Não há nada que nos permita assumir isto. E com base naquilo que as comparações internacionais nos ensinam, é muito provável que esteja bem longe da verdade.
Nem entro aqui na discussão do dinheiro que Portugal gasta em educação, que obrigaria a um melhor e mais equitativo desempenho do sistema. Sem dúvida que isto é verdade.

Refiro apenas que as comparações internacionais - inclusive de outros testes para além do PISA, como o TIMSS e o PIRLS - nos dizem que não só os sistemas que separam mais tarde os alunos, ou seja, que mantêm um tronco comum até ao fim da escolaridade obrigatória e usam a retenção de forma residual (ou seja, mais igualitários), têm resultados melhores dos que separam os alunos aos 11/12 anos* (mais selectivos), como os que os países com melhores resultados são aqueles com apresentam por norma uma distribuição menos desigual entre os melhores e os piores alunos**.

Perante os elementos empíricos que nos dizem, com alguma segurança, que os sistemas com melhores desempenhos tendem a ser também os menos desiguais, podemos dizer que Portugal pode e deve melhorar muito - em particular, melhorar o desempenho dos piores alunos sem piorar os dos melhores (ou inclusive, melhorar o desempenho destes, dado que a excelência necessita de um 'viveiro' de potenciais bons alunos - isto é, de uma base de recrutamento - que, entre nós, tende a ser pouco cultivado).

O trade-off entre equidade e eficiência, ou entre igualdade e selecção em educação não funciona como o argumento mais conservador nos quer fazer crer. Não quer dizer que, num dado ponto, o dilema entre eficiencia e equidade não surja: teoricamente, ele existe, é óbvio. Acontece que, empiricamente, esse ponto tende a ser empurrado para o horizonte pelo facto de os sistemas encontrarem formas de melhorarem, ao longo do tempo, o seu desempenho - seja pela melhor organização dos recursos materiais e humanos, seja pelo emprego de melhores estratégias pedagógicas, seja porque os alunos que acedem ao sistema e nele evoluem têm maior qualidade de partida e margem de progressão do que os do passado. É este efeito de melhoria e aprendizagem colectiva e individual que me leva a ser optimista e pensar que podemos ter, simultaneamente, melhores alunos e alunos menos desiguais. E não apenas menos desiguais em scores do PISA, mas em relação aos anos de escolaridade efectivamente frequentados pelos alunos.

* Consultar o paper de Eric Hanuschek e Ludger Wossman, "Does Educational Tracking Affect Performance and Inequality? Differences-in-Differences evidence across Countries", IZA paper discussion, 2005 (disponível no site do IZA)
** Consultar, por exemplo, o estudo de John Micklewright e Sylke Schnepf neste livro (p.141)
a partir de resultados de diferentes testes internacionais - PISA, TIMSS e PIRLS (infelizmente Portugal não entra neste estudo).

Sobre a prática generalizada da retenção

Algumas reacções a este post e subsequentes discussões faziam uma interpretação demasiado simplista das minhas observações críticas relativas à prática da retenção. Aparentemente, seria a retenção a 'culpada' dos maus resultados, e não um mero sintoma e, ao mesmo tempo, uma estratégia de luta contra estes. Se acabássemos com a retenção, parecia, tudo estaria resolvido. Esta é, naturalmente, uma leitura distorcida do que estava implícito no meu post. Mas porque o que está implícito presta-se sempre à caricatura, é melhor tornar o que penso explícito.

Perante o facto A - o nosso sistema educativo abusa da retenção - e o facto B - isso não parece resolver problema nenhum, porque os alunos com dificuldades continuam com dificuldades, até, por vezes, ao ponto em que abandonam a escola - é preciso perguntar: porque é que o factos A e B têm a expressão que têm em Portugal (ao contrário do que acontece na maioria dos países europeus)? São muitas as variáveis em jogo neste processo. O melhor a fazer é tentar identificá-las e partir o processo às 'fatias'. Podia explanar a hipótese relativa ao que alguns autores chama "cultura da retenção" na classe docente. Deixo essa hipótese para outro post. Para o que vou dizer a seguir, apenas assumo a existência deste factor (já sei, já sei: este é outro 'implícito' que vai gerar discussão - tema para outro post).

Aqui, desenvolvo a hipótese de que a forma como o nosso sistema de ensino está desenhado acaba por legitimar e contribuir, de forma não-intencional, para o uso excessivo e naturalizado da retenção, dado que as vias alternativas que podiam ser usadas para diferenciar e seleccionar os alunos no interior do sistema - disponíveis em outros países - estão ausentes do nosso.

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A gestão da heterogeneidade social que é consequência inevitável do processo de democratização do ensino secundário (entendido aqui como o lower e o upper secondary, que no sistema português correspondem ao 3.º ciclo do ensino básico e ao ensino secundário, respectivamente) está no centro das tensões inscritas na dicotomia entre selecção e igualdade. A ideia de democratização funciona como um compromisso instável para a tensão entre a função selectiva e a função igualitarista da escola. Existem, por isso, dois sentidos distintos da democratização: um que pende para o pólo selectivo, ancorado no ideal de igualdade de acesso, de oportunidades e de tratamento que garante sucesso [apenas] aos melhores, segundo uma concepção meritocrática da justiça; ou para o pólo igualitário, ancorado no ideal de igualdade de resultados ou de conhecimentos e competências adquiridas, segundo uma concepção correctiva da justiça.

No passado, antes da massificação do sistema, a selecção escolar e social era feita de modo quase-automático: seleccionar significava restringir fortemente o acesso do grande número de estudantes oriundos do ciclos inferiores do básico ao seu último ciclo e ao ensino secundário. Esta situação mudou, e em muitos dos sistemas dos países mais prósperos a democratização quantitativa foi sendo progressivamente com a expansão rápida dos sistemas a ter lugar nos anos 60 e 70 do século passado (e um pouco mais tardiamente em Portugal). Este processo teve como consequência o aumento da tensão no interior do sistema de ensino, em virtude da heterogeneidade social dos alunos que passam a aceder em massa ao ensino secundário. A mudança fundamental é que a selecção passa a ter de operar no interior do sistema educativo, e não às suas portas.

Em alguns países (em particular, os da Europa do Norte), o momento diferenciador do ponto de vista estrutural foi 'empurrado' para uma fase posterior à escolaridade obrigatória (para os últimos 2/3 anos do ensino secundário), separando claramente a escolaridade de base da escolaridade de especialização. No entanto, na maioria dos países a selecção desenvolveu-se no interior da escolaridade obrigatória. Ou seja, a abertura massificadora do sistema, quando não separa claramente a escolaridade de base da de especialização (garantindo que a selecção é diferida da primeira para a segunda) tende a ser acompanhada de medidas de diferenciação dos alunos internas a sistema assente em bifurcações mais ou menos explícitas. Esta selecção dos alunos em função dos seus conhecimentos e competências, sabemos bem, está mais ou menos fortemente articulada com a gestão de públicos socialmente heterogéneos.

Quando Albert Hirschman propôs o esquema lealdade-saída-voz no seu ensaio de 1970, o sistema educativo aparecia como perspectivado a partir das famílias. O que fazer quando estas estão insatisfeitas com a qualidade do ensino - isto é, quando a lealdade face ao sistema e os seus actores está em crise? Existem duas opções: protestar (colocando pressão sobre o corpo docente, questionando as suas práticas, critérios, etc.) ou sair (isto é, escolher outra escola, se o sistema permitir). Desta lógica decorre que, quanto mais fácil e mais adoptada é hipótese da 'saída', menos qualidade terão os mecanismos de diálogo, de cooperação, de debate ou de pressão que caracterizam diferentes variantes da hipótese de 'voz'.

Usemos o raciocínio de Hirschman agora de ponto de vista da relação 'professor-aluno'. O que acontece quando um professor perde, se não a ‘lealdade’, pelo menos a cumplicidade - cultural, comunicacional ou, genericamente, de ‘classe’ - que existia nos sistemas educativos altamente selectivos do passado, quando as salas de aula eram, a partir de um dado nível de ensino, povoadas pelos héritiers e pelos boursiers descritos por Bourdieu e Passeron nos anos 60? Quando o aluno não conhece e respeita o seu métier, revelando dificuldades de aprendizagem e/ou disciplina, o professor (ou a escola, enquanto organização de um colectivo de profissionais) tem, basicamente, duas hipóteses: mudar de estratégia pedagógica (o equivalente, no esquema original, do ‘protesto’); ou, na variante da 'saída', orientá-lo para fileiras ou turmas que julga mais consentâneas com o seu valor ou retê-lo – produzindo, em qualquer das situações, o que é inevitavelmente uma exclusão (mesmo que tenha uma justificação pedagógica), porque impede o aluno de prosseguir a sua escolaridade de forma normal. Na lógica do esquema do Hirschman, quanto mais fácil é a 'saída', mais fraca é a 'voz': quanto mais fácil é a decisão de excluir o aluno do percurso 'normal' do sistema, menos qualidade terão as estratégias alternativas de apoio aos estudantes com maiores dificuldades de aprendizagem e mais fracos desempenhos para evitar essa mesma saída.

Tendo em conta que os sistemas educativos nacionais são diferenciados, permitindo percursos escolares mais ou menos heterogéneos, podemos, de forma geral, identificar quatro principais estratégias de diferenciação* (que não devem ser vistas como mutuamente exclusivas):

(1) a diversificação escolar precoce através da orientação em direcção a fileiras ou troncos alternativos do ensino secundário inferior, isto é, antes do final da escolaridade obrigatória; podemos dividir as formas de diversificação escolar precoce em formas estruturais (na Alemanha e na Áustria a diversificação escolar precoce inicia-se aos 10 anos; na Holanda, Bélgica e Irlanda, aos 12) e institucionais (o último ciclo do básico segue um programa comum, como na Holanda, mas decorre em escolas diferentes).
O relatório do PISA2006 chama a atenção para a forma como a diversificação escolar precoce dos alunos potencia o efeito das desigualdades sócio-económicas de partida: «institutional tracking is closely related to the impact which socio-economic background has on student performance: the earlier student are stratified into separate institutions or programmes, the stronger is the impact which the school’s average socio-economic has on performance» (p.228).

(2) a escolha de escola pelas famílias. Sobre este instrumento de diferenciação, a OCDE - organização insuspeita de esquerdismo - chama a atenção:
«- School choice may pose risks to equity since well-educated parents may make shrewder choices. Better-off parents have the resources to exploit choice, and academic selection tends to accelerate the progress of those who have already gained the best start in life from their parents.
- Across countries, greater choice in school systems is associated with larger differences in the social composition of different schools.» (p.78-9)

E recomenda:
«- School choice poses risks to equity and requires careful management, in particular to ensure that it does not result in increased differences in the social composition of different schools.
- Given school choice, oversubscribed schools need ways to ensure an even social mix in schools – for example selection methods such as lottery arrangements. Financial premiums to schools attracting disadvantaged pupils may also help.» (p.79)

(3) a distribuição dos alunos no interior das escolas, por turmas; esta situação pode decorrer de práticas explícitas (como em França, onde nos dois últimos anos do collège há uma diferenciação curricular, prefigurando as trajectórias futuras dos alunos, embora estes se mantenham na mesma escola; ou em Inglaterra, onde o grouping by ability faz parte das orientações políticas centrais), ou práticas mais ou menos escondidas (porque contra as orientações centrais dos Ministérios da Educação), em percursos ditos comuns, sob a designação de opções ou de percursos de orientação.

(4) a retenção.

Ora, num sistema como o português, as alternativas (1) e (2) não são reais opções. A unificação do ensino básico impede a diferenciação precoce – a opção (1) – enquanto que a escolha de escola pelos pais – a opção (2) - é, em Portugal, muito limitada no ensino público. Talvez isto explique que, no PISA2006, em Portugal, as diferenças entre as escolas sejam relativamente fracas no desempenho dos estudantes: entre dois estudantes com o mesmo background sócio-económico, um que esteja numa escola ‘boa’ e noutro numa escola ‘má’, o primeiro ganha apenas 16 pontos de desempenho em ciências ao segundo.

Assim, a diferenciação dos estudantes parece fazer mais dentro da escola do que entre as escolas – que é a estratégia (3), mais invisível à diferenciação estrutural, e por isso mais difícil de observar sem estudos mais aproximados à realidade dos estabelecimentos (no entanto, um dado do PISA indicia uma diferença importante entre as competências dos estudantes no interior da mesma escola: Portugal é o quarto país dos 57 participantes no PISA2006 com maior diferença de resultados entre as escolas com no ability grouping ou ability grouping for some subjects e aquelas com ability grouping for all subjects, depois da Eslovénia, o Reino Unido e a Argentina, com uma diferença de cerca de 30 pontos).

Independentemente do uso generalizado ou não da estratégia (3) para reduzir a heterogeneidade dos alunos no interior das escolas, a estratégia (4) acabou se tornar a forma escolhida para reduzir as tensões inscritas num sistema que, por força do universalismo, tem de aceitar no seu interior alunos socialmente muito heterogéneos: esta generalização ao longo do tempo transformou a retenção no mecanismo regulador e de diferenciação interna do sistema, alimentando o seu carácter selectivo.

Até aqui falei de uma causa possível da prática generalizada da retenção. Agora vale a pena falar dos seus efeitos:

- saída precoce do aluno do sistema: a consequência mais directa de retenção, em particular quando visa o mesmo aluno mais do que uma vez, é aumentar a probabilidade que aquele abandone o sistema sem completar a escolaridade obrigatória ou o ensino secundário. A retenção de um aluno, sobretudo quando ela se verifica muito cedo na sua escolaridade, é demasiadas vezes o início de um percurso de insucesso marcado por sucessivas retenções em anos seguintes que vão ditar, mais cedo ou mais tarde, a sua saída do sistema educativo. Uma escola que retém o aluno uma, duas, três ou mais vezes tem, aos seus olhos, muito pouco para lhe dar, para além da experiência repetida do insucesso e da sanção oficial da sua incapacidade para aprender o que a larga maioria das crianças/jovens da sua idade são capazes. Este fenómeno tem um impacto muito forte sobre os níveis de equidade do sistema educativo: dado que sabemos que a retenção (e o abandono escolar) atinge(m) na sua grande maioria os filhos de famílias com fracos recursos culturais e económicos, o seu uso generalizado contribui, a longo prazo, para a reprodução intergeracional da desigualdade na que é a sociedade mais desigual da UE.

- o efeito dominó na reprodução das desigualdades e da pobreza: na medida em que a retenção é um dos mecanismos centrais na saída precoce e na saída antecipada do sistema de ensino, ela contribui, indirectamente e a prazo, para a reprodução das desigualdades sociais e para a das situações de vulnerabilidade social e económica dos trabalhadores com baixas qualificações. Dados relativos à União Europeia-15 mostram a forte correlação entre a saída precoce do sistema de ensino e o risco de pobreza. O mecanismo envolvido neste processo é bem descrito pela ideia de “equilíbrio de baixas competências/qualificações” (low skill equilibrium): uma parte significativa do mercado de trabalho nacional alimenta-se (e depende) de mão-de-obra pouco qualificada e ao mesmo tempo funciona como uma força atractora de alunos com fraco desempenho escolar, poucas perspectivas de futuro académico e desejosos da sua 'autonomia' que conseguem com o primeiro salário.

- adiamento da introdução de práticas pedagógicas mais efectivas: um terceiro efeito menos óbvio, mas muito importante à luz do que sabemos pelo trabalho de análise comparativa dos sistemas educativos. Assim, há muito que alguns países europeus tomaram a decisão de eliminar a retenção como estratégia ao dispor do corpo docente para gerir os alunos com dificuldades de aprendizagem. A solução encontrada por estes sistemas educativos não foi, naturalmente, a de substituir a prática da retenção pela simples passagem administrativa dos alunos sem contrapartida nem mudanças nas estratégias de ensino; se assim fosse, não seria possível que os seus alunos apresentassem melhores resultados que os portugueses em provas internacionais de desempenho como o PISA (caso exemplar é o da Finlândia, cujo sistema não recorre à retenção, e cujos alunos ocupam o topo dos resultados nas provas do PISA2006). O abandono da retenção levou, antes, ao desenvolvimento progressivo de processos e técnicas pedagógicas que não fazem assentar a sua eficácia na 'ameaça' de que, se o aluno não tiver aproveitamento, deve ficar retido, mas sim num acompanhamento mais individualizado e atento aos primeiros sinais de dificuldade na aprendizagem, capaz de colocar em prática planos de recuperação adaptado aos problemas de cada aluno.
Ora, em Portugal há muito que vivemos as consequências de a situação ser a inversa. Enquanto que os países que abandonaram a estratégia da retenção foram obrigados a encontrar soluções alternativas para fazerem os alunos aprender os conhecimentos e competências que fazem parte da escolaridade obrigatória, a generalização, entre nós, do uso excessivo da retenção como estratégia privilegiada para lidar com os alunos com mais dificuldades retardou o desenvolvimento de estratégias alternativas, pedagogicamente mais eficazes. Encontramos aqui de novo o esquema de Hirschman: quanto mais fácil a estratégia de 'saída', mais fracas serão as abordagens alternativas de resolução de um dado problema.

Este terceiro efeito é de extraordinária importância porque não se trata apenas de um efeito: ele é também causa da reprodução da prática em causa. Ou seja, a retenção não é apenas a resposta à existencia de alunos com dificuldades; é também a resposta rotineira à inexistência de estratégias e abordagens eficazes que possam substituí-la na sua missão que deve ser pedagógica e não selectiva. Quanto mais fácil é (ab)usar (d)e uma prática, mais difícil é substituí-la por outra - mesmo que esta seja mais equitativa e mais eficiente para o aluno e para o sistema.