segunda-feira, 21 de julho de 2008

Endividamento: irresponsabilidade familiar ou o impacto da desigualdade?

"Não estamos a falar de idosos, dos típicos desempregados, mas de pessoas com menos de 40 ou 45 anos que se calhar não deixam de pagar a netcabo nem desmarcam as férias na agência de viagens mas passam fome".
Manuel Lemos, presidente das União das Misericórdias Portuguesas

É este comportamento irracional? Muitos pensarão que sim. Infelizmente, a questão do endividamento das famílias quase nunca é analisada a partir da óptica das desigualdades. Quando o fazemos, o puzzle fica muito menos complicado. A explicação para as pessoas cortarem na comida porque não querem cortar na internet, nas férias, etc., é porque estes últimos são bens posicionais: o que conta é menos o que as pessoas possuem em absoluto e mais o que elas possuem por comparação ao resto da sociedade, em particular os grupos com os quais elas se comparam. Hoje, para muitos nas classes médias, é quase inaceitável não ter acesso à internet ou não fazer férias; seria vergonhoso não usufruir destes bens, porque toda a gente que "interessa" deles usufrui.

O problema das sociedades altamente desiguais (veja-se o padrão do endividamento das famílias no capitalismo anglo-saxónico, bem mais inigualitário do que o europeu [gráfico retirado daqui]), e onde as classes altas, com rendimentos elevadíssimos por relação à sociedade em que vivem, gostam de ostentar o seu luxo, é este: quanto mais alto elas fixam a norma, mais dinheiro as classes médias vão ter que gastar para não perder o seu lugar na hierarquia simbólica. O resultado é simples:
(1) maior endividamento dos indivíduos/famílias;
(2) no caso de ser necessário 'cortar' no consumo, este acontecerá no que pode ser mantido 'invisível' (por exemplo, a comida), mantendo aquilo que seria socialmente inaceitável perder aos olhos de outros (família, amigos, colegas, vizinhos, etc.).

Por isso, as palavras de Manuel Lemos (assumindo que o é dito é real e minimamente representativo do que se passa) não descrevem uma realidade povoada de agentes que perderem completamente o sentido das prioridades: o seu comportamento só pode ser realmente compreendido e julgado à luz do carácter posicional de um conjunto de bens que se tornaram simbolicamente centrais, e da dinâmica de desigualdade actual provocada pela "descolagem" dos mais ricos: uma desigualdade que não é má apenas para os pobres, mas também para as classes médias.

6 comentários:

Anónimo disse...

Bem me parecia... ainda ontem o título do DN era qualquer coisa como "familias já pedem comida às misercórdias por e-mail"... Estou a imaginar uma pessoa a pensar "deixa-me cá ligar o portátil para mandar um mail à SCM, que a comida já acabou...". Acho inaceitável que haja sequer alguma preocupação com estes so called "novos pobres". São apenas uns quantos imbecis que passaram directamente de novos ricos para novos pobres. Mas que, lá está, não deixam de ter o jipe nem a casa da expo, nem de fazer as ferias em Varadero (que eles não são menos que os outros, ora!) mas acham que podem comer (literalmente) à custa das pessoas que fazem realmente sacrificios...
Para esses imbecis só tenho uma palavra: cresçam!

CLeone disse...

Sem contradizer a análise em nada, só uma observação: não é por haver uma noção minimamente formalizável(«bens posicionais») que determinados comportamentos (dar prioridade ao statu em detrimento das necessidades e obrigações pressupostas pelo statu) passam a ser lógicos ou sequer aceitáveis. Claro que a falta (e a fuga, pela «invisibilidade») à sanção social permite explicar muito do puzzle, mas uma vez composto este falta refazê-lo. Isto é, a associação do post entre compreender e julgar esse comportamento vem amalgamar duas realidades que conviria diferenciar: uma, compreender, que gere políticas (de limitação ao crédito, de informação, etc.) sociais preventivas; outra, julgar, de impacto mais imediato, punitivas, como dissuasor de irresponsabilidade individual (não coisas hipócritas como a lista de devedores ao Estado que é tb mau pagador, mas processos rápidos, penas de serviço cívico,etc). E isto precisamente por o problema ser grave não só para os mais pobres mas também para a classe média. É defensável que govenros progressistas e bancos centrais, etc., vejam bancos proporem créditos de 50 anos, ou até aos 80 anos de idade, e considerem isto investimento sério (já nem digo inteligente)? As dificuldades actuais não deveriam motivar uma tentativa de diferenciação de condições de crédito segundo o fim (produtivo ou não) do crédito? Internet pode ser bem de trabalho, ir de férias em programa de agência...

Hugo Mendes disse...

Mónica,

Não acho que nos devamos preocupar com estas situações da mesma forma como olhamos para aquelas marcadas pela severa privação. Mas acho que elas devem ser colocadas no seu devido contexto para perceber o que realmente se passa para que as prioridades das famílias pareçam assim, de repente, estranhmente invertidas.


Carlos,

Analisar não é julgar, sem dúvida, mas não acho que o julgamento possa ser independente do tipo de análise que fazemos. Eu não discordo de medidas orientadas para evitar certas situações de (potencial) abuso por parte das entidades que facultam crédito aos indivíduos e às famílias (o caso que apresenta não me parece o mais problemático em termos da irresponsabilidade individual/familiar: a renegociação dos empréstimos à habitação acontece porque as pessoas efectivamente não podem fugir às mensalidades que são, em alguns casos, galopantes).

Mas o meu objectivo era chamar a atenção para a "corrida de status" a que se assiste actualmente, e como as desigualdades de rendimento/riqueza a tornam mais perversa.
E quanto a medidas imediatas, podíamos pensar em taxar de forma mais severa certos bens de luxo. Isto já para não falar no imposto sucessório e num imposto sobre a riqueza. Isto existe pela Europa fora. Não percebo como não pode existir cá.

Bluesy disse...

Bom, de facto, nunca tinha visto as coisas por esta perspectiva...

L. Rodrigues disse...

""corrida de status" a que se assiste actualmente".

Como o texto deixa entender, a dimensão do fenómeno é mais óbvia agora, mas a pulsão do status é universal e ancestral. É clássico o exercício:
"Gostaria mais de ganhar 100 quando todos ganham 100, ou ganhar 50 quando os outros ganham 25?".
A maioria das pessoas escolhe a segunda.

É racional? É. Ter uma posição dominante é mais importante do que ter mais apenas por ter mais.
A razão da escolha é consciente? Diria que não. De acordo com alguns cientistas cognitivos 98% do pensamento não é consciente, não há razão para isto ser excepção.

Acho que foi Scarface que disse:
First you get the money, then you get the power, then you get the women.
Acho que isto resume a coisa.

Uma curiosidade: há algum estudo sério sobre aparentes diferenças de importância do status em sociedades nórdicas e mediterrânicas, por exemplo? Terá que ver com a matriz religiosa?

CLeone disse...

Hugo,
Quanto ao objectivo do post, notei-o, e por isso comecei por dizer qu estou de acordo. Sobre a relação análise/julgamento, claro que é inevitável, o meu ponto é apenas estabelecer o temro adequado dessa relação sem amalgamá-la.
Realmente, eu devia era escrever um post sbre isto em vez de apenas linkar este post lá no Amigo do Povo. Mas enfim: o meu exemplo foi de ocasião, a compra de casa nem é bem tipo de fenómeno a que o post faz referência, foi só o caso de publicidade e crédito escandaloso que primeiro me ocorreu.
Sobe taxar certos bens de luxo, não se encarecê-los ainda mais os removeria do estatuto de tentação ou se apenas agravaria o problema dos endividados...a avaliar pelos carros, creio que seria a segunda. Além do mais, poderiam sempre endividar-se cá para comprar coisas em locais com impostos mais baixos, via net (como sucede cada vez mais). O post refere o efeito de emulação social que, nisso, seria estimulante, suponho. Afinal, a maioria dos «ricos» que ostentam bens que os remediados tentam adquirir, quem são? Ronaldo, Mourinho, etc., não o «dinheiro velho» da Quinta da Marinha, por etiqueta bastante mais discreto. Não creio que os impostos resolvam, nem no imediato.
Última nota para l.rodrigues (que anuuncia a adesão do cognitivismo ao freudismo, o que é bom): no post do Hugo sobre confiança, o comentário que lá deixei inclui bibliografia, não exactamente sobre statu, mas próxima qb.