terça-feira, 1 de julho de 2008

Sobre a prática generalizada da retenção

Algumas reacções a este post e subsequentes discussões faziam uma interpretação demasiado simplista das minhas observações críticas relativas à prática da retenção. Aparentemente, seria a retenção a 'culpada' dos maus resultados, e não um mero sintoma e, ao mesmo tempo, uma estratégia de luta contra estes. Se acabássemos com a retenção, parecia, tudo estaria resolvido. Esta é, naturalmente, uma leitura distorcida do que estava implícito no meu post. Mas porque o que está implícito presta-se sempre à caricatura, é melhor tornar o que penso explícito.

Perante o facto A - o nosso sistema educativo abusa da retenção - e o facto B - isso não parece resolver problema nenhum, porque os alunos com dificuldades continuam com dificuldades, até, por vezes, ao ponto em que abandonam a escola - é preciso perguntar: porque é que o factos A e B têm a expressão que têm em Portugal (ao contrário do que acontece na maioria dos países europeus)? São muitas as variáveis em jogo neste processo. O melhor a fazer é tentar identificá-las e partir o processo às 'fatias'. Podia explanar a hipótese relativa ao que alguns autores chama "cultura da retenção" na classe docente. Deixo essa hipótese para outro post. Para o que vou dizer a seguir, apenas assumo a existência deste factor (já sei, já sei: este é outro 'implícito' que vai gerar discussão - tema para outro post).

Aqui, desenvolvo a hipótese de que a forma como o nosso sistema de ensino está desenhado acaba por legitimar e contribuir, de forma não-intencional, para o uso excessivo e naturalizado da retenção, dado que as vias alternativas que podiam ser usadas para diferenciar e seleccionar os alunos no interior do sistema - disponíveis em outros países - estão ausentes do nosso.

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A gestão da heterogeneidade social que é consequência inevitável do processo de democratização do ensino secundário (entendido aqui como o lower e o upper secondary, que no sistema português correspondem ao 3.º ciclo do ensino básico e ao ensino secundário, respectivamente) está no centro das tensões inscritas na dicotomia entre selecção e igualdade. A ideia de democratização funciona como um compromisso instável para a tensão entre a função selectiva e a função igualitarista da escola. Existem, por isso, dois sentidos distintos da democratização: um que pende para o pólo selectivo, ancorado no ideal de igualdade de acesso, de oportunidades e de tratamento que garante sucesso [apenas] aos melhores, segundo uma concepção meritocrática da justiça; ou para o pólo igualitário, ancorado no ideal de igualdade de resultados ou de conhecimentos e competências adquiridas, segundo uma concepção correctiva da justiça.

No passado, antes da massificação do sistema, a selecção escolar e social era feita de modo quase-automático: seleccionar significava restringir fortemente o acesso do grande número de estudantes oriundos do ciclos inferiores do básico ao seu último ciclo e ao ensino secundário. Esta situação mudou, e em muitos dos sistemas dos países mais prósperos a democratização quantitativa foi sendo progressivamente com a expansão rápida dos sistemas a ter lugar nos anos 60 e 70 do século passado (e um pouco mais tardiamente em Portugal). Este processo teve como consequência o aumento da tensão no interior do sistema de ensino, em virtude da heterogeneidade social dos alunos que passam a aceder em massa ao ensino secundário. A mudança fundamental é que a selecção passa a ter de operar no interior do sistema educativo, e não às suas portas.

Em alguns países (em particular, os da Europa do Norte), o momento diferenciador do ponto de vista estrutural foi 'empurrado' para uma fase posterior à escolaridade obrigatória (para os últimos 2/3 anos do ensino secundário), separando claramente a escolaridade de base da escolaridade de especialização. No entanto, na maioria dos países a selecção desenvolveu-se no interior da escolaridade obrigatória. Ou seja, a abertura massificadora do sistema, quando não separa claramente a escolaridade de base da de especialização (garantindo que a selecção é diferida da primeira para a segunda) tende a ser acompanhada de medidas de diferenciação dos alunos internas a sistema assente em bifurcações mais ou menos explícitas. Esta selecção dos alunos em função dos seus conhecimentos e competências, sabemos bem, está mais ou menos fortemente articulada com a gestão de públicos socialmente heterogéneos.

Quando Albert Hirschman propôs o esquema lealdade-saída-voz no seu ensaio de 1970, o sistema educativo aparecia como perspectivado a partir das famílias. O que fazer quando estas estão insatisfeitas com a qualidade do ensino - isto é, quando a lealdade face ao sistema e os seus actores está em crise? Existem duas opções: protestar (colocando pressão sobre o corpo docente, questionando as suas práticas, critérios, etc.) ou sair (isto é, escolher outra escola, se o sistema permitir). Desta lógica decorre que, quanto mais fácil e mais adoptada é hipótese da 'saída', menos qualidade terão os mecanismos de diálogo, de cooperação, de debate ou de pressão que caracterizam diferentes variantes da hipótese de 'voz'.

Usemos o raciocínio de Hirschman agora de ponto de vista da relação 'professor-aluno'. O que acontece quando um professor perde, se não a ‘lealdade’, pelo menos a cumplicidade - cultural, comunicacional ou, genericamente, de ‘classe’ - que existia nos sistemas educativos altamente selectivos do passado, quando as salas de aula eram, a partir de um dado nível de ensino, povoadas pelos héritiers e pelos boursiers descritos por Bourdieu e Passeron nos anos 60? Quando o aluno não conhece e respeita o seu métier, revelando dificuldades de aprendizagem e/ou disciplina, o professor (ou a escola, enquanto organização de um colectivo de profissionais) tem, basicamente, duas hipóteses: mudar de estratégia pedagógica (o equivalente, no esquema original, do ‘protesto’); ou, na variante da 'saída', orientá-lo para fileiras ou turmas que julga mais consentâneas com o seu valor ou retê-lo – produzindo, em qualquer das situações, o que é inevitavelmente uma exclusão (mesmo que tenha uma justificação pedagógica), porque impede o aluno de prosseguir a sua escolaridade de forma normal. Na lógica do esquema do Hirschman, quanto mais fácil é a 'saída', mais fraca é a 'voz': quanto mais fácil é a decisão de excluir o aluno do percurso 'normal' do sistema, menos qualidade terão as estratégias alternativas de apoio aos estudantes com maiores dificuldades de aprendizagem e mais fracos desempenhos para evitar essa mesma saída.

Tendo em conta que os sistemas educativos nacionais são diferenciados, permitindo percursos escolares mais ou menos heterogéneos, podemos, de forma geral, identificar quatro principais estratégias de diferenciação* (que não devem ser vistas como mutuamente exclusivas):

(1) a diversificação escolar precoce através da orientação em direcção a fileiras ou troncos alternativos do ensino secundário inferior, isto é, antes do final da escolaridade obrigatória; podemos dividir as formas de diversificação escolar precoce em formas estruturais (na Alemanha e na Áustria a diversificação escolar precoce inicia-se aos 10 anos; na Holanda, Bélgica e Irlanda, aos 12) e institucionais (o último ciclo do básico segue um programa comum, como na Holanda, mas decorre em escolas diferentes).
O relatório do PISA2006 chama a atenção para a forma como a diversificação escolar precoce dos alunos potencia o efeito das desigualdades sócio-económicas de partida: «institutional tracking is closely related to the impact which socio-economic background has on student performance: the earlier student are stratified into separate institutions or programmes, the stronger is the impact which the school’s average socio-economic has on performance» (p.228).

(2) a escolha de escola pelas famílias. Sobre este instrumento de diferenciação, a OCDE - organização insuspeita de esquerdismo - chama a atenção:
«- School choice may pose risks to equity since well-educated parents may make shrewder choices. Better-off parents have the resources to exploit choice, and academic selection tends to accelerate the progress of those who have already gained the best start in life from their parents.
- Across countries, greater choice in school systems is associated with larger differences in the social composition of different schools.» (p.78-9)

E recomenda:
«- School choice poses risks to equity and requires careful management, in particular to ensure that it does not result in increased differences in the social composition of different schools.
- Given school choice, oversubscribed schools need ways to ensure an even social mix in schools – for example selection methods such as lottery arrangements. Financial premiums to schools attracting disadvantaged pupils may also help.» (p.79)

(3) a distribuição dos alunos no interior das escolas, por turmas; esta situação pode decorrer de práticas explícitas (como em França, onde nos dois últimos anos do collège há uma diferenciação curricular, prefigurando as trajectórias futuras dos alunos, embora estes se mantenham na mesma escola; ou em Inglaterra, onde o grouping by ability faz parte das orientações políticas centrais), ou práticas mais ou menos escondidas (porque contra as orientações centrais dos Ministérios da Educação), em percursos ditos comuns, sob a designação de opções ou de percursos de orientação.

(4) a retenção.

Ora, num sistema como o português, as alternativas (1) e (2) não são reais opções. A unificação do ensino básico impede a diferenciação precoce – a opção (1) – enquanto que a escolha de escola pelos pais – a opção (2) - é, em Portugal, muito limitada no ensino público. Talvez isto explique que, no PISA2006, em Portugal, as diferenças entre as escolas sejam relativamente fracas no desempenho dos estudantes: entre dois estudantes com o mesmo background sócio-económico, um que esteja numa escola ‘boa’ e noutro numa escola ‘má’, o primeiro ganha apenas 16 pontos de desempenho em ciências ao segundo.

Assim, a diferenciação dos estudantes parece fazer mais dentro da escola do que entre as escolas – que é a estratégia (3), mais invisível à diferenciação estrutural, e por isso mais difícil de observar sem estudos mais aproximados à realidade dos estabelecimentos (no entanto, um dado do PISA indicia uma diferença importante entre as competências dos estudantes no interior da mesma escola: Portugal é o quarto país dos 57 participantes no PISA2006 com maior diferença de resultados entre as escolas com no ability grouping ou ability grouping for some subjects e aquelas com ability grouping for all subjects, depois da Eslovénia, o Reino Unido e a Argentina, com uma diferença de cerca de 30 pontos).

Independentemente do uso generalizado ou não da estratégia (3) para reduzir a heterogeneidade dos alunos no interior das escolas, a estratégia (4) acabou se tornar a forma escolhida para reduzir as tensões inscritas num sistema que, por força do universalismo, tem de aceitar no seu interior alunos socialmente muito heterogéneos: esta generalização ao longo do tempo transformou a retenção no mecanismo regulador e de diferenciação interna do sistema, alimentando o seu carácter selectivo.

Até aqui falei de uma causa possível da prática generalizada da retenção. Agora vale a pena falar dos seus efeitos:

- saída precoce do aluno do sistema: a consequência mais directa de retenção, em particular quando visa o mesmo aluno mais do que uma vez, é aumentar a probabilidade que aquele abandone o sistema sem completar a escolaridade obrigatória ou o ensino secundário. A retenção de um aluno, sobretudo quando ela se verifica muito cedo na sua escolaridade, é demasiadas vezes o início de um percurso de insucesso marcado por sucessivas retenções em anos seguintes que vão ditar, mais cedo ou mais tarde, a sua saída do sistema educativo. Uma escola que retém o aluno uma, duas, três ou mais vezes tem, aos seus olhos, muito pouco para lhe dar, para além da experiência repetida do insucesso e da sanção oficial da sua incapacidade para aprender o que a larga maioria das crianças/jovens da sua idade são capazes. Este fenómeno tem um impacto muito forte sobre os níveis de equidade do sistema educativo: dado que sabemos que a retenção (e o abandono escolar) atinge(m) na sua grande maioria os filhos de famílias com fracos recursos culturais e económicos, o seu uso generalizado contribui, a longo prazo, para a reprodução intergeracional da desigualdade na que é a sociedade mais desigual da UE.

- o efeito dominó na reprodução das desigualdades e da pobreza: na medida em que a retenção é um dos mecanismos centrais na saída precoce e na saída antecipada do sistema de ensino, ela contribui, indirectamente e a prazo, para a reprodução das desigualdades sociais e para a das situações de vulnerabilidade social e económica dos trabalhadores com baixas qualificações. Dados relativos à União Europeia-15 mostram a forte correlação entre a saída precoce do sistema de ensino e o risco de pobreza. O mecanismo envolvido neste processo é bem descrito pela ideia de “equilíbrio de baixas competências/qualificações” (low skill equilibrium): uma parte significativa do mercado de trabalho nacional alimenta-se (e depende) de mão-de-obra pouco qualificada e ao mesmo tempo funciona como uma força atractora de alunos com fraco desempenho escolar, poucas perspectivas de futuro académico e desejosos da sua 'autonomia' que conseguem com o primeiro salário.

- adiamento da introdução de práticas pedagógicas mais efectivas: um terceiro efeito menos óbvio, mas muito importante à luz do que sabemos pelo trabalho de análise comparativa dos sistemas educativos. Assim, há muito que alguns países europeus tomaram a decisão de eliminar a retenção como estratégia ao dispor do corpo docente para gerir os alunos com dificuldades de aprendizagem. A solução encontrada por estes sistemas educativos não foi, naturalmente, a de substituir a prática da retenção pela simples passagem administrativa dos alunos sem contrapartida nem mudanças nas estratégias de ensino; se assim fosse, não seria possível que os seus alunos apresentassem melhores resultados que os portugueses em provas internacionais de desempenho como o PISA (caso exemplar é o da Finlândia, cujo sistema não recorre à retenção, e cujos alunos ocupam o topo dos resultados nas provas do PISA2006). O abandono da retenção levou, antes, ao desenvolvimento progressivo de processos e técnicas pedagógicas que não fazem assentar a sua eficácia na 'ameaça' de que, se o aluno não tiver aproveitamento, deve ficar retido, mas sim num acompanhamento mais individualizado e atento aos primeiros sinais de dificuldade na aprendizagem, capaz de colocar em prática planos de recuperação adaptado aos problemas de cada aluno.
Ora, em Portugal há muito que vivemos as consequências de a situação ser a inversa. Enquanto que os países que abandonaram a estratégia da retenção foram obrigados a encontrar soluções alternativas para fazerem os alunos aprender os conhecimentos e competências que fazem parte da escolaridade obrigatória, a generalização, entre nós, do uso excessivo da retenção como estratégia privilegiada para lidar com os alunos com mais dificuldades retardou o desenvolvimento de estratégias alternativas, pedagogicamente mais eficazes. Encontramos aqui de novo o esquema de Hirschman: quanto mais fácil a estratégia de 'saída', mais fracas serão as abordagens alternativas de resolução de um dado problema.

Este terceiro efeito é de extraordinária importância porque não se trata apenas de um efeito: ele é também causa da reprodução da prática em causa. Ou seja, a retenção não é apenas a resposta à existencia de alunos com dificuldades; é também a resposta rotineira à inexistência de estratégias e abordagens eficazes que possam substituí-la na sua missão que deve ser pedagógica e não selectiva. Quanto mais fácil é (ab)usar (d)e uma prática, mais difícil é substituí-la por outra - mesmo que esta seja mais equitativa e mais eficiente para o aluno e para o sistema.

2 comentários:

Armando Rocheteau disse...

Parabéns pelo texto.
Abraço

Anónimo disse...

Sobram evidências de que a retenção é, realmente, um instrumento injusto, do ponto de vista social, ineficaz, do ponto de vista pedagógico, e anacrónico, do ponto de vista organizacional. Mas o PISA talvez nem seja o melhor argumento. Um inquérito aos alunos do 9º ano que coordenei este ano mostrava como, a cada vez que se reprova, aumentam as possibilidades de voltar a reprovar e também de ser alvo de processos disciplinares, mas decresce a motivação para estudar e o tempo diário de estudo. Ou seja, a permissa psicológica de que, ao reprovar, um aluno toma consciência da sua situação e torna-se mais dedicado à escola, apenas se aplicará num número residual de casos. Nos outros, a reprovação significa um estigma e um estímulo directo à exclusão e à indisciplina. Os resultados do inquérito mostram que, se a primeira reprovação no básico é já um cartão amarelo, a segunda marca claramente o ponto de ruptura com o sistema. Até porque a cada ano que passa, a pressão para começar a ganhar dinheiro aumenta, sobretudo nas classes desfavorecidas, onde a retenção tem maior incidência. Apesar de tudo isso, as retenções irão continuar enquanto se conservar a ficção colectiva de que esse é o (último) bastião da autoridade e do prestígio docentes.