Terminei o meu último post a dizer que a luta contra as desigualdades - de rendimento, de qualificações, de recursos, de oportunidades, etc. - exigiria uma «coligação transideológica, transpartidária e que mobilize todos os parceiros sociais».
Sabemos que as desigualdades são más para quem perde com elas - tal como a pobreza é má para os pobres. Mas e se conseguíssemos argumentar que as desigualdades são más para o país - e que as elites económicas poderiam também ganhar, a prazo, com a sua redução? Pregar aos convertidos - os eventuais leitores deste blogue - não vale de muito. Mais importante mesmo era conseguir convencer os cépticos das boas bases da nossa posição.
A questão imediata é, naturalmente: «como convencer os actores sociais, mesmo os mais cínicos e os mais oportunistas, de que é do interesse deles uma redução das desigualdades? como evitar que ele raciocinem da forma oposta e mais comum: que para retormar o crescimento temos de sacrificar os níveis de relativa igualdade - mesmo que sejam internacionalmente tão baixos! - e deixar que o (alegado) trade-off entre igualdade e eficiência funcione a favor desta última?»
É importante deixar um elemento preliminar: existe muita literatura - e um consenso razoavelmente amplo entre economistas - que defende que níveis elevados de desigualdades nos países mais pobres são prejudiciais para o crescimento. Assim, as desigualdades e a pobreza elevada tendem: a provocar instabilidade social e macrofinanceira que impedem reformas promotoras de eficiencia (e redistribuição) que necessitam da existencia de cooperação e confiança entre as diversas partes; a provocar falhas nos mercados de crédito (impedindo o investimento e o empreendedorismo); a retardar o crescimento em áreas rurais, abandonadas pela população que procura as cidades, partindo o país ao "meio", etc. (uma análise mais extensa destes fenómenos fica para outra altura). Estes países estão como que 'encurralados' numa armadilha de pobreza e precisam de ser catapultados para trajectórias de crescimento sustentado. Se isso não acontecer - e abundam os exemplos, particularmente no continente africano -, os males de que padecem vão continuar a alimentar-se uns ao outros e a impedir o desenvolvimento.
Portugal é mais próspero do que os países que integram estes estudos e não podemos aplicar as mesmas análises e conclusões sem nuances importantes. No entanto, há bons argumentos para importar o mecanismo essencial. E não é, parece-me, preciso ser muito imaginativo. Vamos por partes.
1.º argumento => Partamos de um diagnóstico: «relativamente ao PIB é estimado que no espaço da União Europeia a elevação em um ano do nível médio de escolaridade se traduza no aumento da taxa de crescimento anual entre 0,3 a 0,5 pontos percentuais. Para Portugal, a OCDE (2003) estima que o produto poderia ter crescido mais 1,2 pontos percentuais por ano, entre as décadas de 70 a 90, se os seus níveis de escolaridade estivessem equiparados à média dos países da OCDE.»
Ou seja, o nosso défice de capital humano retarda o crescimento nacional - recuperar neste campo é essencial para o país. A teoria económica concorda com isto. As elites económicas também concordarão.
2.º argumento => As fortes desigualdades sócio-económicas e de qualificações, e os altos níveis de pobreza - dada a forma como medimos normalmente 'pobreza', estamos sempre a falar de desigualdades, mas coloco as duas a par para reforçar a ideia, perdoem-me o pleonasmo - dificultam muito o papel das famílias na criação de um ambiente familiar que promova o sucesso escolar das crianças; e dificulta o papel da escola e dos professores: o sistema educativo básico e secundário está desenhado para lançar os alunos para o ensino superior e para não valorizar, institucional e simbolicamente, as formações intermédias (como o ensino profissional), e pouco preparado para integrar e ensinar alunos que não aqueles automaticamente familiarizados com a cultura escolar (o que leva, como estratégia de segunda ordem, a que o corpo docente abuse da estratégia da retenção - que, a prazo, tantas vezes leva ao abandono da escola pelo aluno).
A(s) teoria(s) sociológica(s) concorda(m) com isto. As elites económicas também podem ser persuadidas a concordar.
3.º argumento, e síntese dos anteriores => As fortes desigualdades/pobreza retardam o crescimento económico pelas dificuldades que colocam sobre as famílias, sobre os alunos e sobre as escolas, contribuindo, indirectamente, para elevados níveis de saída precoce do sistema educativo. A saída precoce do sistema educativo bloqueia a transformação da estrutura de qualificações do país e não só impede a passagem para uma "economia do conhecimento" assente numa mão-de-obra com altas qualificações, como reproduz a resiliência de um tecido económico dependente de baixas qualificações/competências, na indústria ou nos serviços. Esta economia de baixas qualificações/competências alimenta-se (diria mais: depende) da saída precoce dos jovens do sistema de ensino, funcionando como um 'atractor' de alunos com fraco desempenho escolar, poucas perspectivas de futuro académico e desejosos da sua 'autonomia' (que conseguem com o 'primeiro salário') (na maior parte das vezes filhos de famílias que, auferindo poucos rendimentos, tendem muitas vezes a avaliar com bons olhos a saída precoce de um sistema que não é para "eles", e que mais vale eles "fazerem-se ao trabalho", capaz de trazer compensações financeiras imediatas).
Num mecanismo conceptualmente muito semelhante ao que os economistas analisam nos países mais pobres - aqueles com mais elevados níveis de desigualdade de partida apresentam taxas de crescimento mais baixas, e este crescimento fraco tem um impacto muito reduzido na redução da pobreza -, estamos perante uma armadilha (recentemente teorizada pelo economista radical Samuel Bowles e colegas no livro Poverty Traps), em particular a armadilha das baixas qualificações.
Resumindo: as desigualdades sócio-económicas contribuem para retardar o crescimento económico do país.
É preciso quebrar a cadeia que alimenta o equilíbrio que sustenta esta armadilha, agindo de preferência simultaneamente nos pilares essenciais: a escola e a família, mas também sobre as empresas, e as suas atitudes e práticas (em relação à formação profissional, por exemplo). Libertos da armadilha, os actores individuais e colectivos poderão usufruir das oportunidades institucionais existentes (por exemplo, a gratuitudade do ensino básico e secundário) e por melhorar/instituir (por exemplo, maior apoio financeiro aos alunos no ensino secundário, em particular os do ensino profissional; ou incentivos para determinados alunos, em particular os que mais melhoraram as suas competências ao longo da sua escolaridade, terminarem o secundário, conferindo-lhe créditos que podem ser usados para facilitar a sua entrada numa universidade (como propõe o já falecido sociólogo norte-americano James S.Coleman neste livro)) e contribuir para a formação do capital humano de que o país necessita. Todos beneficiariam.
O Estado (de investimento) social que apoiasse este processo de simultânea redução das desigualdades e aumento do crescimento funcionaria, na expressão do sociólogo sueco Walter Korpi, mais como um "sistema de irrigação" do tecido económico - a metáfora progressista - do que como um "balde que pinga" (isto é, que desperdiça recursos ao mesmo tempo que os transfere dos ricos para os pobres), na metáfora conservadora.
Quem quer ouvir a mensagem de que as desigualdades são más para o país?
terça-feira, 10 de junho de 2008
Argumentos para uma coligação anti-desigualdades
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4 comentários:
Infelizmente, as pessoas possuem uma imensa dificuldade em trocar um prejuízo certo a curto prazo por um ganho (ainda por cima incerto, em particular em termos de retorno individual) a longo prazo.Neste caso, parece-me ainda um pouco ingénuo pedir as pessoas de Direita, cujo mote se pode resumir a "quanto-ganho-com-isso?", que se sacrifiquem individualmente (pagando mais impostos) em troca dum retorno que vai beneficiar o colectivo. Além disso é assumido que as pessoas tomam decisões políticas de modo racional. A verdade é bem diferente. Há à Direita um intenso rancor contra os pobres, vistos como criaturas irresponsáveis, impecilhos no caminho de quem realmente merece (eles, por definição). Este rancor é um enorme obstáculo a quaiquer política de ajuda generalizada aos mais pobres. Basta pensar no que é necessário. Por exemplo, acompanhamento especializado dos alunos que demonstrem mais dificuldades escolares. A Direita obviamente diz que tal é desperdício de dinheiro e um favorecimento dos preguiçosos. Para o rendimento escolar melhorar, dizem eles, basta exigir mais do aluno! Afinal, não é em escolas privadas, mais exigentes, que os alunos têm melhores classificações?...
Não digo que o esforço do Hugo não seja útil, mas não colocava muitas esperanças nele...
Caro Pedro,
Concordo com muito do que diz é verdade, mas repare: as políticas não são negociadas com entidades genéricas (a "Direita"), mas com pessoas em representação de instituições concretas. Não precisamos de demonstrar ou convencer "todos" os cépticos que as políticas sociais podem ter um impacto benéfico não apenas na equidade, mas na eficácia e na capacidade produtiva do país (e, atenção, o benefício não é apenas para o "colectivo", mas muitas vezes para os próprios empregadores: o que é preciso é encontrar jogos de soma positiva que tragam benefício para todos); o que é necessário é procurar e encontrar os interlocutores esclarecidos (e eles existem!) que, mesmo que não partilhem das mesmas inclinações idológicas, nem sequer a mesma preocupação pelo bem comum, percebam que eles (e aqueles que eles representam) - não só o país, e não só os pobres - podem ganhar, a médio prazo, com a redução das desigualdades. Se olharmos para inúmeros casos históricos da construção dos sistemas de protecção social e do mercado de trabalho, vemos que não se tratou apenas de uma luta entre o(s representantes do) trabalho vs. o(s representantes do) capital, mas de um processo complicado de negociação e de ganhos distribuídos por todos. Ou seja, o patronato não é/foi sempre contra as políticas sociais, na medida em que também ele beneficia(va) delas, por vezes a médio, por vezes mesmo a curto prazo. É este círculo virtuoso que é preciso encontrar, e não acho que precisemos de uma conversão ideológica daqueles que se colocam à direita, mas daquilo que tantas vezes falta nas decisões que envolvem negociação entre parceiros: inteligência colectiva.
Talvez esteja a ser optimista. Mas acho que precisamos de uma dose razoável de optimismo para encontrar as soluções exequíveis.
abraço,
Hugo
O teu post, que no meu caso é facto pregar a um convertido, só peca por dar por adquirido que as elites portuguesas pensam mais no bem comum do país do que na manutenção do seu estatuto diferenciado, material e simbólico. os comportamentos políticos e económicos das nossas «elites» (aspas infelizmente necessárias) geram pessimismo antropológico há muito tempo - e não só as elites de Direita, diga-se em abono da verdade. em rigor, os acordos «trans-tudo» que exiges no princípio do post estão já feitos a nível das ditas elites, num sentido manifestamente conservador, mesmo quando enroupado em linguagem muito jovem, moderna ou radical. Gostava que escrevesses um post sobre as estratégias para promover essa coligação, pois quanto aos argumentos estamos de acordo (e mesmo muita gente de Direita concordaria com eles).
Caro Hugo Mendes,
Concordo com o argumento de que uma redução das desigualdades beneficia toda a sociedade. Concordo também com o CLEONE acerca do cepticismo da receptividade da direita, em geral, para aceitar esse argumento. Partes de pressupostos iluministas - toda a gente se conduz pela razão - e esses pressupostos são recusados por parte dos intelectuais de direita. Lembro-me de um editorial do Paulo Portas em que ele definia prioridades na defesa dos interesses: «primeiro os da nossa família e os nossos amigos, depois os da nossa pátria, depois os da nossa civilização, etc». Estou a citar de cor, mas o espírito era este.
Nessa estratégia de convencer parte da direita acho mais eficaz argumentar junto da direita liberal, que defende a igualdade perante a lei, que as excessivas desigualdades, as assimetrias de poder, negam, na prática, o ideal de igualdade perante a lei. Haverá julgamento justo de um conflito que oponha um «homeless» a um milionário?
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