quarta-feira, 25 de junho de 2008

Poderá a escola ser um par de sapatos?

[Correndo o risco de politizar um pouco mais do que tem sido 0 meu registo habitual neste blogue, gostaria de lançar alguns argumentos que reforçam a questão, salientada pelo excelente post (anterior) do Hugo, da desvalorização da escola pública por parte de alguns editorialistas nacionais e de um certo sector da direita. Tomei a liberdade de re-publicar um post que escrevi há mais de dois anos (neste blogue desactivado) sobre o que significaria a privatização do sistema educativo].

A crítica principal a um eventual sistema de ensino totalmente privado tem a ver com a seguinte questão de princípio: poderá a educação ser mercadoria? Para a direita liberal a lógica que está na base da produção e comercialização de um par de sapatos adequa-se a qualquer outro bem ou serviço. Se o par de sapatos tiver qualidade e um preço competitivo terá certamente sucesso num mercado livre, se a qualidade tiver aquém do preço pedido, provavelmente os sapatos não sairão da prateleira. O mesmo se pode aplicar à escola, se o serviço for de qualidade e se adequar aos custos de frequência, a escola terá sempre fregueses.
E qual são os serviços prestados por uma escola? Basicamente, ela tem duas funções que estão indirectamente associadas (pelo menos na escola pública). Por um lado, a escola é uma agente de socialização responsável pela transmissão de conhecimentos, ou seja, pela formação. Por outro lado, a escola detém uma função certificadora. Isto é, cabe a esta instituição certificar as competências dos seus formandos. Essa certificação será essencial para concorrer no mercado de trabalho e para ter acesso a um emprego.
Se encararmos a escola como um par de sapatos, sabemos, à partida, que ao comprarmos os seus serviços, estamos a comprar conhecimento e um certificado (estes passam a estar directamente associados). Como consumidores deveremos ter a liberdade de exigir que a escola não só forme os nossos filhos, tendo por base os conhecimentos que consideramos mais relevantes, como deveremos exigir uma certificação que corresponda ao nível dos custos efectuados. Como não é difícil perceber duas perversões nascem desta lógica mercantil.
A primeira advém de um pressuposto errado, ao considerar que racionalidade da escolha valorizará sobretudo a qualidade do conhecimento e não o nível da certificação obtida. Ou seja, muitos pais poderão escolher dada escola não pela sua qualidade mas porque esta atribui em média notas mais elevadas, de modo a que os seus filhos tenham mais vantagens perante o mercado de emprego. Sem grande dificuldade cairíamos numa concorrência certificadora, ao invés de uma concorrência assente na prestação de um ensino de qualidade. A segunda relaciona-se com a valorização de certos saberes em detrimento de outros. Tendo por base uma racionalidade meramente mercantil, facilmente se exigiria que a escola transmitisse preferencialmente determinado tipo de conhecimentos que mais se coadunassem com os requisitos do mercado de trabalho. Muitas disciplinas desapareceriam certamente.
Pode argumentar-se que o sistema de ensino público também estabelece uma seriação e hierarquização disciplinar, mas, apesar de alguns critérios poderem ser questionados, estes não têm por base uma lógica dominantemente mercantil e certificadora. Quando pomos os filhos na escola pública (e também numa privada) exige-se que eles aprendam e que sejam bem ensinados. Não me parece que perante um sistema totalmente privado a exigência continue a ser só essa. Esta é a perversão maior em transformar a educação num par de sapatos.

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