No capítulo que escrevi para este livro - alvo de uma excelente discussão na terça-feira que decorreu na livraria Pó dos Livros, moderada pelo Renato - disse que talvez a ideia central para (re)pensar hoje o Estado social hoje seja a de Estado de investimento social. A formulação - que, no significado mais elementar, afirma que devemos olhar para as despesas em protecção social não como custos, mas como investimentos no futuro individual e colectivo - não é nada original: o livro que talvez a tenha posto na boca do mundo é este. Uma outra ideia básica diz-nos que é essencial intervir o mais cedo possível no ciclo de vida do indivíduo para prevenir males - individuais, em primeiro lugar, mas obviamente com uma dimensão colectiva - futuros: competências e conhecimentos baixos, dificuldade de encontrar emprego, morbilidade alta, fraca mobilização cognitiva, etc.. "Intervir mais cedo possível" significa conferir um enquadramento institucional que permita às crianças um desenvolvimento cognitivo de qualidade, e que não dependa apenas da fortuna de se nascer numa família com capital cultural e económico que garanta esse enquadramento.
Quanto mais se estudam estas questões, mais se sabe da importância dos primeiros anos de vida - muito antes da entrada na escola para o cumprimento da escolaridade obrigatória -
Num paper intitulado "Social, Skills and Synapses" - disponível on-line no sitio da IZA (procurar por Publications > Discussion Papers > 2008) -, James Heckman, um dos mais importantes cientistas sociais a trabalhar nestas questões nos EUA, começa por relembrar que a «sociedade americana está a polarizar-se. Proporcionalmente, mais jovens americanos estão a concluir a universidade de que no passado. Ao mesmo tempo, a taxas de conclusão do ensino secundário sao as mais baixas do que há 40 anos». Depois, elenca 15 pontos que são muitíssimo importantes do ponto de vista das políticas públicas para a redução das desigualdades. Vale a pena traduzi-los e listá-los:
1 - Muitos importantes problemas sociais como o crime, a gravidez adolescente, o abandono do ensino secundário e más condições de saúde estão ligadas a baixos níveis de competência e capacidade na sociedade.
2 - Na análise das políticas que promovem competências e capacidades, a sociedade devia reconhecer a multiplicidade das capacidades humanas.
3 - Actualmente, as políticas públicas nos EUA centram-se na promoção e na mensuração da capacidade cognitiva através de testes de QI e de desempenho. Os parâmetros de avaliação do programa No Child Left Behind concentram a sua atenção nos testes de desempenho e não avaliam importantes factores não-cognitivos que promovem o sucesso na escola e na vida.
4 - As capacidades cognitivas são determinantes importantes do sucesso sócio-económico.
5 - Tal como são as competências não-cognitivas, a saúde mental e física, a perseverança, a atenção, a motivação, e a auto-confiança. Elas contribuem para o desempenho na sociedade e ajudam a explicar os resultados nos mesmos testes que usualmente medem a capacidade cognitiva.
6 - As diferenças na capacidade entre crianças socialmente privilegiadas e desprivilegiadas começam a aumentar muito cedo.
7. O ambiente familiar das crianças é um dos preditores mais importantes das capacidades cognitivas e sócio-emocionais, tal como de um conjunto de comportamentos como o crime ou os níveis de saúde.
8. O ambiente familiar nos EUA e em muitos outros países deteriorou-se nos últimos 40 anos.
9. Evidência experimental sobre os efeitos positivos de intervenções precoces nas crianças em famílias socialmente desprivilegiadas é consistente com uma grande quantidade de evidência não-experimental que mostra que a ausência de um ambiente familiar favorável prejudica os futuros desempenhos das crianças.
10. Se a sociedade intervém cedo o suficiente, ela pode melhorar as capacidades cognitivas e sócio-emocionais e a saúde das crianças socialmente desprivilegiadas.
11. Intervenções precoces promovem a escolaridade, reduzem o crime, promovem a produtividade no trabalho e reduzem a gravidez adolescente.
12. Estima-se que estas intervenções têm uma relação custo-benefício e uma taxa de retorno altas.
13. Tal como se configuram hoje os programas, as intervenções que ocorrem cedo no ciclo de vida das crianças socialmente desprivilegiadas têm muito mais altos retornos económicos do que as intervenções tardias, como aquelas que reduzem o rácio aluno/professor, as medidas de formação profissional, os programas de reabilitação criminal, os programas de literacia para adultos, os subsídios às propinas ou as despesas com as forças policiais.
14. A formação de competências ao longo do ciclo da vida é de natureza dinâmica. Competências puxam competências; motivation puxa motivação. A motivação promove, de forma cruzada, competências, e estes promovem motivação. Se uma criança não está motivada para aprender
cedo, o mais provável é que, uma vez na idade adulta, esse individuo tenha problemas na vida social e económica. Quanto mais tempo a sociedade espera para intervir no ciclo dde vida de uma criança socialmente desprivilegiada, mais caro será corrigir a desvantagem.
15. É necessário um grande recentrar das políticas com o objectivo de capitalizar o conhecinento que existe sobre o ciclo de vida da formação de competencias e da condição de saúde e a importância dos primeiros anos na criação da desigualdade nos EUA, e para a produção das competências da mão-de-obra.
Observações como estas - que se reportam aos EUA, mas que são, diria, quase universalizáveis -, que procuram resumir muito trabalho de análise empírica, sustentam os contornos gerais de um programa político da maior centralidade nos nossos dias. Elas apontam para a absoluta centralidade de um dos objectivo centrais de um Estado social de investimento social, que é o de reduzir radicalmente ou mesmo erradicar a pobreza infantil, como propõe Esping-Andersen no livro acima linkado (p.66) (para um desenvolvimento do tema pelo mesmo autor, deve-se também consultar este trabalho mais recente, devidamente referida há uns tempos aqui). Estes não são apenas delírios académicos. O governo de Tony Blair propôs atingir precisamente essa meta em 2020, e a Comissão Europeia já reconheceu a importância de caminhar para este objectivo no Joint Report on Social Inclusion 2004. Inclusivamente, o Report of the High Level Group on the future of social policy in an enlarged European Union do mesmo ano propunha a introdução de um rendimento universal para cada criança (Child Basic Income (CBI)):
«the EU approach should help Member States on cutting down poverty amongst children and providing adequate investment in them. In a number of Member States, a disproportionate number of children are in households below the poverty line. Low income affects their nutrition, their health, and their housing. Given the importance of this problem, there is a case for proposing a basic income for children, under which all Member States guarantee that the child benefit and other payments for children will reach a specified percentage of the median household income in that country». (p.63)
Existem até simulações relativamente a quanto custaria implementar um esquema destes, dependendo do objectivo (podia ser reduzir a pobreza infantil a metade dos níveis actuais, ou reduzi-la a 5%, ou erradicá-la), da meta (é a linha de pobreza definida em cada país ou uma linha da pobreza europeia?) e dependendo da fonte de financiamento (se cada Estado, ou se todos os Estados da UE: no primeiro esquema, seria caro para os países mais pobres, que são aqueles que mais altas taxas de pobreza infantil apresentam; no segundo, seria bastante mais barato, mas haveria clara redistribuição dos países mais ricos para os mais pobres). Esse trabalho pode ser encontrado no artigo que Horacio Levy, Christine Lietz e Holly Sutherland publicam neste livro, a partir da base de dados do EUROMOD (mas há uma versão em working paper aqui). Segundo a simulação dos autores, em Portugal seria relativamente barato descer dos altos níveis de pobreza infantil (27% em 2001, dados usados no artigo; em 2004 o valor era de 24%); um CBI de valor equivalente a 10% do rendimento mediano português e transferido para cada criança (i.e., uma família com 3 crianças receberia 3 CBIs) faria cair a taxa de pobreza infantil de 27% para 18% (a queda é brusca - na simulação dos autores nenhum outro pais tem uma tão grande redução com um valor tão baixo - facto explicado por muitas crianças viverem em agregados familiares muito próximo da linha de pobreza), e fixado a 20% do rendimento mediano colocaria o valor da pobreza infantil em 15%.
A questão, claro, é como se financiaria o CBI. Os autores propõem uma taxa plana a juntar ao IRS individual de cada cidadão nacional ou europeu: o CBI a 10% do rendimento mediano nacional custaria 0,52% do rendimento individual,0,6% se o imposto fosse colectado a nível europeu e taxa de pobreza fosse global à UE; um CBI a 20% custaria 2,35% (2,33% se o imposto fosse colectado a nível europeu e taxa de pobreza fosse global à UE). As variantes dos autores vão até a um CBI a 40% do rendimento mediano.
Este método de financiamento, não sendo muito progressivo (dado que a taxa é plana sobre o rendimento), leva a que as famílias com menos rendimentos paguem menos em absoluto e, sobretudo, que as famílias pobres com crianças (ou abaixo da linha de pobreza precisamente porque têm crianças a cargo) recebessem muito mais do que pagam. Isto seria ainda mais verdade se todos os países contribuíssem, o que levaria a uma forte redistribuição entre países. Mas também se trataria de uma redistribuição entre casais com filhos/crianças a cargo e casais (já) sem filhos/crianças a cargo. Se, mais do que nunca, em tempos de baixa fertilidade, as crianças são bens públicos, elas devem ser financiadas por todos. Em caso contrário, os casais ou indivíduos que optam por não ter filhos são free riders dos efeitos positivos trazidos, a prazo, pelo facto dos outros terem tido filhos! E se são free riders, justifica-se que paguem um imposto por colocarem, objectiva mesmo que não subjectivamente, o fardo da reprodução intergeracional da sociedade no "colo" dos outros casais.
Seria um CBI caro? Depende. O custo não me parece exorbitante, em particular face ao facto de os intrumentos redistributivos directos a nível europeu terem regredido com o alargamento para 25 em 2004. A agenda de Lisboa, para levar a sério (em particular a parte da coesão social) exige mais redistribuição. Ao mesmo tempo, quando perguntamos o preço, convém calcular tudo aquilo que resulta das crianças crescerem com níveis de privação elevados, e para o qual James Heckman alerta: maior probabilidade de abandono escolar e consequente perda agregada de competências); maior risco de criação de um exercito de reserva para actividades paralelas e/ou criminais; níveis de morbilidade mais elevados, a serem pagos em muitos países pelos contribuintes que financiam sistemas de saúde universais, etc - um conjunto demasiado trivial de males públicos. Disseram custo? A palavra certa é investimento.
Mas imaginemos que muitos achem caro. Bom, é natural. É que o bem-estar e alargamento dos horizontes, presentes e futuros, das crianças é caro: basta perguntar a uma família minimamente abastada. A questão é se a Europa - isto é, nós - está disposta a cumprir os compromissos que se coloca a si própria.
sábado, 7 de junho de 2008
"Mas as crianças, Senhor"
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Hugo Mendes,
Não sou sociólogo e terá de me perdoar as imprecisões.
Estamos de acordo com as principais linhas e preocupações que muito bem apresenta.
No entanto o que quer que seja esse eventual programa de combate à pobreza infantil - e nisso sei do que falo! - como é que se inscreve o problema dos valores existentes ao nível das tais famílias, sejam as de menor rendimento, sejam as que tendo algum rendimento mediano, não reconhecem as vantagens da cultura?
Aqui chegado, neste comentário rápido, como fazer a ponte sobre o gap cultural, handicap de mt famílias ( está a ver o conceito de novo-rico ?)e , bem assim, como proceder à injecção dos fundos necessários a tirar as crianças do ciclo da pobreza sem que isso corresponda a um maior consumo desregrado dos bens não essenciais e até altamentes gravosos, a qq tentativa de rompimento do tal ciclo vicioso de pobreza-miséria-aculturação-subsídio-consumo ?
A minha pergunta é bem intencionada e não desmerece do seu empenhamento que aqui saúdo.
Posso não concordar com algumas das suas conclusões, mas globalmente considero que me revejo em muito do que escreve.
Já agora não acha que este governo do PS tem vindo exactamente a promover muitas das políticas que vc indica com as únicas capazes de fazer a diferença?
Obrigado
MFerrer
http://homem-ao-mar.blogspot.com
Caro MFerrer,
A questão do acesso à cultura é essencial, e complementar ao trabalho de redução da pobreza infantil. Deve ser também uma prioridade, e aí o serviço público de educação, que deve começar cada mais cedo e com maior qualidade terá um papel decisivo.
No entanto, eu não faria "depender" a redução da pobreza infantil - ou da pobreza em geral - do "bom uso dos recursos". É óbvio que é desejável que as pessoas façam um "bom uso" dos recursos que dispõem - em particular se são reduzidos, e ainda mais se se tratam de recursos que a sociedade redistribui. De qualquer forma, é aqui que a responsabilidade individual e a aprendizagem para a autonomia devem intervir, e as pessoas devem aprender a tomar decisões livremente - e a aprendizagem implica que possam e tenham direito a errar. O Estado tem um papel importante nos incentivos que fornece - por exemplo, não estou seguro que um CBI devesse ser completamente incondicional; podia estar dependente de uma participação no mercado de trabalho e no sistema de educação-formação - e na pedagogia que pode e deve sempre fazer. Mas parece-me que a redistribuição deve fomentar a autonomia individual, e não o "paternalismo".
Se me pergunta se as políticas sociais do PS partilham este espírito, parece-me claramente que sim. Mas os países mais pobres da Europa têm limites à redistribuição, seja financeiros (a margem de manobra é reduzida), seja políticos (estas matérias são muito controversas para muitos grupos economicamente mais privilegiados), seja relativos ao nível salarial da economia. Não podemos esquecer que um CBI, como qualquer transferência (o abono de família, por exemplo), pode criar incentivos à inactividade e intensificar a armadilha do desemprego. Por exemplo, aumentar indiscriminadamente o abono de família seria uma medida generosa, mas com impacto provavelmente negativo no "labour supply". E o objectivo, afinal de contas, é que as pessoas vivam condignamente, mas também tenham um emprego - até porque a base fiscal do Estado (de que depende sempre em última análise, afinal, a sua capacidade redistributiva) deve estar sempre acautelada. Qualquer medida que intervenha nesta área tem de encontrar o equilíbrio certo entre a generosidade/solidariedade social e os potenciais efeitos perversos (individuais e colectivos) no funcionamento do mercado de trabalho. Dito isto, é também preciso melhorar o funcionamento do mercado e trabalho, tema a que dedicarei um post nos próximos dias.
Cumprimentos
Hugo
Enviar um comentário