Já aqui se escreveu sobre a importância das instituições de mercado de trabalho e das relações laborais nas dinâmicas de negociação colectiva, e a forma como estas impactam na distribuição de salários, originando estruturas salariais mais ou menos comprimidas - contribuindo, dessa forma, para maiores ou menores desigualdades de rendimentos.
Nas últimas décadas, as instituições sofreram algumas mudanças, e o grau de centralização na negociação colectiva - quanto maior a centralização, maior a compressão salarial - diminuiu sensivelmente em alguns países onde era historicamente muito elevada. Isso contribuiu para alguma dispersão salarial. Mas isto não significa que tenha havido uma desregulação pura e dura destas instituições: o recuo da centralização deu lugar, nos países que são conhecidos na literatura como "economias coordenadas de mercado" [ECM] (países nórdicos e países continentais), a um sistema de negociação colectiva mais flexível que exige uma mais intensa coordenação entre sindicatos e entre empresas.
Isto foi diferente do que aconteceu nas "economias liberais de mercado" [ELM], que, partindo de níveis altos de desregulação, reforçaram esta estratégia - dado que é daqui que advêm as vantagens competitivas de muitas das suas empresas. Nos EUA, a administração Clinton tentou imitar as instituições laborais alemãs - mas sem grande sucesso: o que mostra que as instituições são mais resilientes que as políticas (e que políticas postas em práticas pelos governos, quando não têm o apoio dos parceiros sociais para mudar as instituições, estão demasiadas vezes votadas ao fracasso).
Infelizmente, estas diferenças entre tipos diferentes de "capitalismo" deviam ser apontadas por quem tinha obrigação de as conhecer - e de não as ocultar. O discurso da "neo-liberalização" e da "desregulação" de tudo ignora, por exemplo, que as empresas que produzem produtos de alta qualidade - que são o grosso das exportações europeias - e que empregam trabalhadores altamente qualificados estão pouco interessadas em desestabilizar radicalmente sistemas de regulações laborais estáveis e com uma presença institucionalizada dos sindicatos. A qualificação dos trabalhadores e a cooperação institucionalizada são bens extraordinariamente importantes na produção de mercadorias de alta qualidade. São vantagens competitivas das empresas. É do seu interesse manter estes recursos e estas condições, mesmo que adaptando-as às condições actuais de um mercado crescentemente globalizado e maior mobilidade de capitais. Quando os sindicatos estão organicamente implantados nas empresas e são responsáveis perante uma importante maioria dos trabalhadores nacionais - o que lhes confere legitimidade, responsabilidade e experiência gestionária -, as empresas dificilmente podem fazer re-estruturações curto-circuitando os mecanismos estabelecidos de negociação. Por isso, os processos de adaptação e transição são mais cooperantes, eficazes e equitativos. Quando isso não acontece, em particular nos mercados de trabalho desregulados, os sindicatos pouco representativos e institucionalmente fracos só têm como alternativa vir para as ruas - e as empresas não têm outra solução senão fazer lobbying sobre os governos no sentido de desregular ainda mais. O conflito laboral é, nestes casos, sinal de incapacidade sindical - e não o seu contrário, como a interminável mitificação do discurso da "luta nas ruas" continua a fazer passar.
Quando se ignora esta diferença elementar entre ECMs e ELMs, não se estão apenas a ignorar diferenças e tendências empíricas reais no interior do espaço europeu. Está-se a ignorar também a oportunidade que traz a criação do mercado único, que é para muitos um monstro por aí à solta que vai levar a um race to the bottom das regulações laborais e níveis de protecção social. Ora, estas teses, embora proferidas à esquerda, mais parecem saídas da literatura neo-liberal - que aplaude este cenário, obviamente, enquanto a esquerda protesta - do que a literatura institucionalista em economia política. Segundo esta, a constituição do mercado único pode constituir uma oportunidade provavelmente única para resolver os problemas de acção colectiva do sindicalismo europeu, obrigando-o a encontrar formas de coordenação eficaz a nivel transnacional.
Num debate um pouco diferente deste - sobre a flexisegurança - escrevi há vários meses noutro sítio:
«o sindicalismo devia ver este contexto como uma oportunidade para fazer um trabalho de internacionalização/europeização sério e de luta contra as barreiras que criam desigualdades entre trabalhadores. Uma política europeia de inflação baixa, gostemos dela ou não, tem a virtude de obrigar os sindicatos a pensar nos efeitos colaterais das suas reivindicações salariais (tanto nas desigualdades entre trabalhadores como no desemprego). Introduz, por isso, uma disciplina que é mãe da inteligência e da estratégia num sector tantas vezes dominado pela ideologia preguiçosa. Por incrível que pareça, a verdade é que uma política restritiva do Banco Central Europeu pode ter o condão de pressionar os sindicatos a coordenarem as suas políticas a nível transnacional, ajudando a resolver um problema - que é hoje bem real - de acção colectiva».
É verdade que as políticas do Banco Central Europeu podiam e deviam prestar mais atenção ao emprego. Mas convém não esquecer que o BCE segue de perto a linha que seguida tradicionalmente na Alemanha pelo Bundesbank, e que este tem uma história de cooperação com o maior sindicato alemão do sector exportador (IGMetall). Assim, e cito (e traduzo) de um texto de Bob Hancké (um dos mais importantes investigadores sobre relações laborais na Europa do ponto de vista institucionalista):
«Especialmente na União Europeia, a processo que antecedeu a união monetária aumentou a pressão institucional para a convergência em direcção a uma versão do modelo alemão de coordenação flexível. O Bundesbank e o IG Metall, o mais importante sindicato alemão do sector exportador, têm estado nas últimas duas décadas [1980 e 1990] envolvidas num jogo de sinalização mútua, no qual a inflação salarial e as taxas de juro estavam fortemente ligados [...] Replicando a ligação entre o Bundesbank e o IG Metall, muitas iniciativas foram levadas a cabo noutros países da União Europeia na última década [de 1990] para alinhar os desenvolvimentos salariais com aqueles da Alemanha, e o resultado tem sido a emergência ou o reforço na maioria das países de alguma forma de negociação salarial colectiva coordenada».
Por isso,
«na viragem do século, as EMCs estavam a convergir em diferentes versões de um modelo comum que ligava um sistema de negociação salarial central mas flexível com estruturas de decisão descentralizadas nas empresas (...) estes desenvolvimentos receberam na Europa um forte empurrão da integração europeia: a maior interdependência entre as economias europeias forçou os sindicatos a ter em conta os procedimentos de negociação colectiva e os efeitos das suas estratégias domésticas nos seus parceiros comerciais».
O futuro da negociação colectiva e da luta contra as desigualdades salariais também - e, já agora, o futuro da Europa enquanto espaço socialmente coeso e economicamente competitivo - passa por aqui. Passa por não contrapor por definição mercado e protecção social - dado que historicamente eles cresceram de mãos dadas - , e empresas e sindicatos - dado que historicamente foram as formas de institucionalização do conflito que criaram as estruturas de cooperação que trouxeram benefícios a todos. O que é importante - e esta é a melhor protecção contra a 'neo-liberalização' das instituições económicas - é manter a estrutura do tecido económico europeu - com o círculo virtuoso entre altas qualificações-alta especialização- altos salários-alta tecnologia -, e alargar esta lógica ao sector dos serviços -> onde a maioria da população trabalha hoje, onde os sindicatos 'entram' tradicionalmente menos que a indústria, e onde são necessários os ganhos de produtividade que precisamos para financiar a protecção social à escala europeia.
E fazer o upgrade onde essa lógica é quase residual - como em Portugal, por exemplo.
quarta-feira, 18 de junho de 2008
Sindicalismo, coordenação e salários à escala europeia
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