Um dos argumentos contra uma distribuição de rendimentos igualitária é a de que ela seria nociva para a competição entre trabalhadores (e empresas). E onde falta a competição, faltaria a qualidade e a eficácia.
Ora, é provável que uma distribuição salarial/rendimentos excessivamente igualitária possa ter, a partir de um determinado ponto, efeitos perversos na competição, na qualidade e na eficácia.
Mas esta é uma daquelas afirmações que faz sentido em abstracto - como também faz sentido, em abstracto, afirmar o contrário: que excessiva desigualdade cria situações de armadilha e de círculo vicioso que impedem os indivíduos de competir com os que têm mais recursos, cuja vantagens sobre os que estão abaixo os podem transformar numa quase-aristocracia.
Faz sentido em abstracto, mas também faz empiricamente. Se olharmos para o quadro da fotografia, retirado deste livro (do capítulo 10, de Gosta Esping-Andersen, p.227), vemos, na primeira coluna, a desigualdade de rendimentos relativa aos 8 países listados, medida pelo índice de Gini; na segunda coluna, vemos a correlação entre os rendimentos de duas gerações. Vemos que esta correlação é mais baixa nos países com menos desigualdades; inversamente, é maior a probabilidade do filho ter rendimentos da ordem dos da sua família nos países onde as desigualdades são mais elevadas.
Na perspectiva de que a competição, para ser justa, implica um level playing field, a relativa igualdade entre indivíduos e a competição não são incompatíveis. Voltando à expressão que usei há uns dias, um capitalismo que produz elevadas desigualdades que, cristalizadas, se reproduzem ao longo do tempo e passam de pais para filhos, tenderá a ser um capitalismo de herdeiros.
Elementos empíricos deste género questionam fortemente o argumento meritocrático segundo o qual «não interessam tanto as desigualdades; o que interessa é que a sociedade seja aberta, permita a mobilidade e premeie os melhores». Na verdade, se as desigualdades se transmitem intergeracionalmente, só a sua redução ou a sua conservação a níveis baixos pode garantir alguma mobilidade e, sobretudo, competição entre os indivíduos, independentemente da sua origem social.
Isto é importante porque, por muito anti-igualitarista que seja a posição liberal, há apesar de tudo um fundo que aproxima esquerda e direita, herdeiras que são do argumentário da modernidade: a ideia de igualdade de oportunidades. O problema na posição liberal, claro, é que a sua adesão tende a ser mais retórica que qualquer outra coisa, dado que se esquece do fundamental. Concretizar a igualdade de oportunidades, levá-la a sério, colocar carne política no esqueleto normativo é difícil, dado que exige aquilo para o qual o liberal não está muito inclinado: exige redistribuição e igualização intra- e intergeracionalmente das oportunidades.
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3 comentários:
Concordo totalmente.
O "problema" é que o que para o Hugo e para mim constitui mérito, não é o mesmo que consititui mérito para a Direita (neo-liberal incluída). Daqui decorre que mesmo que haja quem à Esquerda e à Direita defenda a promoção do mérito e a recompensa do esforço, na prática é um diálogo de surdos, porque termos iguais possuem significados diferentes para os intervenientes.
Para mim, por exemplo só é legítimo falar em mérito relativo, sendo este apenas mensurável a partir do momento em que as pessoas têm iguais oportunidades de desenvolver as suas capacidades. Para a Direita não. Por exemplo, para a Direita tem muito mais mérito, e deve ser recompensado de acordo com tal, um filho de um empresário com sucesso que se torna um empresário com sucesso ele próprio (mantendo a empresa do pai a funcionar) do que um filho de um agricultor analfabeto que chegou a contabilista. Para a Direita, o mérito não é legítimo se houver ajuda "exterior". É para eles uma forma de batota. Menciono "exterior" (por exemplo, do Estado), porque para a Direita é perfeitamente legítimo haver ajuda "interior", da família. Essencialmente, tal demonstra que para a Direita as pessoas não nascem iguais, mas algumas já nascem com mais mérito (porque são filhos de pessoas meritórias), isto é mais merecedoras, do que outras. A questão de quem merece o quê vai ao âmago da diferença entre Direita e Esquerda. Aqui descorri apenas sobre o mérito associado ao trabalho e ao poder económico, mas existem muitas outras maneiras através das quais a Direita (principalmente a mais conservadora) diferencia entre pessoas mais ou menos merecedoras, consoante a sua côr de pele, o seu sexo, a sua religião, a sua etnia, a sua orientação sexual, etc.
Eu não sou um defensor da perfeita igualdade (de resultados). Mas para mim o mérito (relativo) decorre apenas e só do esforço pessoal intrínseco, não do valor que é atribuído pelo mercado a esse esforço. Iguais níveis de esforço intrínseco devem ser recompensados de igual modo.
Pedro,
"Daqui decorre que mesmo que haja quem à Esquerda e à Direita defenda a promoção do mérito e a recompensa do esforço, na prática é um diálogo de surdos, porque termos iguais possuem significados diferentes para os intervenientes".
Não necessariamente, porque isto não se reduz a dois pólos - um que reconhece o mérito e o outro não -, mas a um continuum. E sobretudo, existem duas justificações para haver incentivos que apelam ao mérito: a 'normativa' - e aqui temos diferentes definições filosófico-políticas mais próximas de uma outra família política - e a 'funcional', ou relativa à eficácia. Relativamente a este último, a realidade fundamental é esta: as organizações têm que funcionar. Organizações excessivamente democráticas e horizontais levam a uma difusão perversa das responsabilidades que as torna ineficazes. Porque a responsabilidade é 'de todos', depois não é 'de ninguém'. Para funcionarem, as organizações necessitam por isso de uma estrutura de poder e autoridade. Depois aqui há vários modelos, uns mais verticais, outros menos; uns mais hierárquicos, outros mais colegiais; uns mais colectivos, outros mais individuais. Mas o facto de as organizações necessitarem de (alguma)verticalização implica o apelo a um critério para distribuir as pessoas pelos lugares. Nas nossas sociedades, o critério deve ser o 'mérito' - embora aqui, claro, possa haver definições diferentes, mais ou menos sensíveis ao contexto.
Hugo
"Para funcionarem, as organizações necessitam por isso de uma estrutura de poder e autoridade."
Concordo, e não tenho problema nenhum com isso.
"Mas o facto de as organizações necessitarem de (alguma)verticalização implica o apelo a um critério para distribuir as pessoas pelos lugares. Nas nossas sociedades, o critério deve ser o 'mérito'"
No geral, concordo. O problema, como anteriormente mencionei, reside na caracterização do mérito. Peguemos no exemplo nos gestores duma empresa. Quem merece gerir a empresa? Os gestores escolhidos pelos proprietários, mesmo que o tenham sido por razões pessoais, por exemplo são familiares? Gestores escolhidos pelo governo, porque poder máximo, e portanto detentor da legitimidade do poder? Gestores escolhidos em concurso aberto por uma comissão "independente", nomeada pelos proprietários? Gestores escolhidos por uma comissão que inclui representantes dos trabalhadores? Todos os gestores escolhidos por um destes métodos foram-no através duma apreciação de mérito. Ou seja, todos eles foram escolhidos porque considerados com mais mérito que todos os outros concorrentes. Mas não tenho dúvidas que as escolhas seriam bem diferentes nos diversos casos. Há algum "método" que permita escolher de modo objectivo quem tem mais "mérito"? Não. Claro que não. Pode-se escolher objectivamente quem tem mais mérito, se se definir exactamente o que se entende por mérito. Mas não há de todo consenso sobre o que constitui mérito.... e era isso que pretendia demonstrar. Por mais que se pretenda ser possível discutir e decidir num ambiente não-ideológico, tecnocrata, como o Hugo parece querer fazer, tal nao é possível. Todos os conceitos abstractos têm associada uma interpretação pessoal que deriva da ideologia, ou pressupostos filosóficos, de cada indivíduo. O conceito de mérito é um exemplo, e dos mais evidentes. Lamento, mas quem acha que consegue argumentar em termos não-ideológicos só se está a enganar a si próprio, e indirectamente também quem o ouve.
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