As revoltas vão e voltam nos banlieues parisienses sem grandes soluções à vista (malgré o muito badalado "Plan Banlieue"; ler o editorial de ontem do 'Le Monde' sobre este tema). Pensando a questão para além da demagogia catastrofista e da excessiva condescendência a que estas coisas se prestam no sensacionalismo diário: a área da habitação e da propriedade parece-me uma área onde tanto a reflexão como as políticas públicas parecem menos avançadas. Aqui, deixar o mercado funcionar tem consequências previsíveis: pequenos paraísos para os ricos num lado, bairros problemáticos do outro, onde se concentram inúmeras fontes de insatisfação, sofrimento e violência individual e colectiva. O "ghetto francês" de que fala Eric Maurin neste pequeno óptimo livro, embora não se limite, de forma alguma, às questões residenciais, também é por elas composto e alimentado .
Não tenho solução nenhuma à mão, é verdade. Intervir agressivamente nesta área colidiria com algumas das mais lucrativas lógicas de investimento (com os interesses a elas ligados), por um lado, e com a relativa liberdade das classes médias e altas em "escolher" o sítio onde querem habitar, por outro.
Talvez a primeira "guerra reguladora" – com os interesses na especulação imobiliária, por exemplo – obtivesse o apoio de muitos; não estou certo que a segunda, limitando objectivamente o que são desejos legítimos das famílias e dos indivíduos em escolher o local onde querem habitar, obtivesse grande apoio público.
Parece-me de qualquer forma que as tendências de segregação residencial accionadas no último terço de século em algumas das grandes cidades produzem inúmeros efeitos perversos que trazem lucro e bem-estar a alguns - para além do seu impacto nas desigualdades patrimonais entre indivíduos e famílias, naturalmente -, mas produzem enormes externalidades negativas que se concentram esmagadoramente, claro, naqueles que menos recursos dispõem para fugir delas. Argumentar, como é costume ler nos escritos de certos editorialistas, que "quem sai, sai; quem fica, que tivesse saído", não é sério. Pensar que o "votar com os pés" resolve alguma coisa passa por cima da diferença entre uma análise de equilíbrio parcial e uma análise de equilíbrio geral, e comete uma elementar falácia da composição: o que faz sentido para um ou alguns agentes deixa de fazer sentido se todos tomarem a mesma decisão. Assim, quem consegue abandonar o bairro problemático A para uma zona mais qualificada pode melhorar (imediatamente) as suas condições de bem-estar e (a prazo) as suas oportunidades na vida, por comparação à sua situação anterior e à situação em que permanecem os seus ex-vizinhos; mas se todos os habitantes abandonassem o bairro problemático A no mesmo momento - ou num curto espaço de tempo - não resolvíamos problema nenhum se isso não representasse uma mudança séria nos recursos e nas oportunidades dos habitantes do bairro A. Em caso contrário, a fuga em massa do bairro A obrigava-nos a encontrar um bairro B onde as mesmas pessoas - e os mesmos problemas - seriam 'realojados'. Este erro de raciocínio tem origem numa forma individualista de pensar problemas que exigem soluções colectivas, ou seja, políticas. Não chega facilitar a exit individual; precisamos de voice, isto é, intervenção pública. O objectivo político não deve ser dar oportunidades a todos de saírem dos bairros problemáticos (como se chegasse dizer: "os que ficaram, paciência..."); deve ser acabar com estes.
Parece-me que os problemas sociais aqui envolvidos são demasiado importante para a sua resolução ser entregue ao mercado. A luta contra a reproduçao inter e intrageracional de desigualdades e de privilégios também devia passar por aqui (e não apenas pela existência de um imposto sobre a propriedade, sobre a riqueza, ou sucessório, por exemplo).
Assim, nas discussões de política educativa, existe a ideia de que as escolas devem manter um student mix que evite a segregação e aumente a possibilidade dos piores alunos beneficiarem das externalidades positivas que decorrem da partilha do mesmo espaço de aprendizagem com os melhores alunos (numa estratégia que combina uma preocupação simultânea com a equidade e com a eficácia global das aprendizagens). Na política de habitação, faria sentido impor um nível de social mix mínimo numa dada área residencial? Se sim – e tenho simpatia pela ideia -, seria possível concretizá-lo? Como? E quais os efeitos perversos? Seriam estes muito caros e insuportáveis?
terça-feira, 17 de junho de 2008
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2 comentários:
"Na política de habitação, faria sentido impor um nível de social mix mínimo numa dada área residencial? Se sim – e tenho simpatia pela ideia -, seria possível concretizá-lo? Como?"
1) os preços extremamente elevados da habitação resultam principalmente da especulação imobiliária com os terrenos disponíveis para urbanização; tal resulta em grande parte do facto do loteamento urbanístico estar em Portugal nas mãos dos privados; tal tem de acabar, e qualquer terreno só poderá ser urbanizado se primeiro passar para a posse do Estado, recebendo o proprietário do terreno como indemnização o valor agrícola desse terreno, i.e. o valor que teria se não fosse urbanizável, como acontece por exemplo na Holanda e na Dinamarca; no jornal Quercus Ambiente de Maio/Junho de 2008 (para sócios) vem uma excelente entrevista a Pedro Bingre, mestre em Planeamento Regional e Urbano, onde desmascara a imoralidade das mais-valias privadas que resultam da passagem admnistrativa de terrenos agrícolas para urbanos, por exemplo via revisão de PDMs; infelizmente esta entrevista não está online, mas está uma outra muito semelhante em
http://umportodostodosporum.blogspot.com/2007/05/pedro-bingre-do-amaral-em-entrevista-ao.html
outro artigo no mesmo sentido é este
http://www.esquerda.net/index.php?option=com_content&task=view&id=2102&Itemid=40
ainda outro texto muito interessante de Pedro Bingre pode ser encontrado aqui
http://ambio.blogspot.com/2005/08/quando-as-hienas-sorriem.html
vale a pena chegar ao fim e ler sobre o regime de ocupação do solo em vigor na Dinamarca; o Bloco de Esquerda apresentou em 2007 uma proposta de lei para tentar resolver o problema
http://ambio.blogspot.com/2007/02/venham-mais-quatro.htm
claro que foi chumbada;
2) todas as novas urbanizações devem obrigatoriamente reservar uma percentagem significativa (talvez 1/3) de apartamentos/residências para serem vendidos por um preço significativamente inferior ao restante (talvez 50% inferior), os quais seriam sorteados entre todos os candidatos que tenham feito prova (ex. via declaração de IRS) que auferem no máximo X de rendimento anual; segundo sei, em Lisboa algo do género foi recentement aprovado
http://www.esquerda.net/index.php?option=com_content&task=view&id=1928&Itemid=68
"E quais os efeitos perversos? Seriam estes muito caros e insuportáveis?"
Provavelmente, conforme o caso, os terrenos ou habitações restantes seriam um pouco mais caras. Efectivamente, haveria uma transferência de dinheiro dos mais ricos para os mais pobres.
Pedro,
Obrigado pelas referências.
Hugo
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