terça-feira, 10 de junho de 2008

Como não construir uma coligação anti-desigualdades?

O João Rodrigues escreve no 5 Dias um texto importante sobre a pobreza e as desigualdades. Fico satisfeito com a visibilidade dada à temática, mas não estou seguro que esta seja a estratégia certa de abordagem ao problema. Em primeiro lugar, falta alguma profundidade histórica ao cenário que o João apresenta, e não me parece que possamos colocar alguns factos como se eles pairassem no tempo (não entro nas explicações que o João não dá, nem pretende dar, porque o seu é um post mais de descrição do que de análise; mas não custava dizer que o nosso Estado social – tal como a democracia, sendo que os dois andam quase sempre de mão dada - para além de insuficientemente desenvolvido, é também recente, se o compararmos com os outros países europeus. A história é assim, não dá para voltar para trás - mas quando avaliamos o presente e projectamos o futuro, convém não esquecer o que, não podendo ser mudado, pesa de forma determinante na configuração do status quo).

Vamos ao que interessa: como o João argumenta, é verdade que a pobreza nos activos continua demasiado alta (19% em 1995; 18% em 2004), resultado dos baixos salários que produzem o bem anglo-saxónico fenómeno dos working poor (mais sobre esta questão, e como lutar contra este flagelo, esta semana neste blogue); que o rácio entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres, estando melhor em 2006 (6,8 (valor provisório)) que em 1995 (era de 7,4), já esteve melhor em 2000 (6,4); que o índice de Gini não ata nem desata; e que aumentaram as desigualdades salariais entre 1995 e 2005 (mas tal não espanta, dada a fraca cobertura dos mecanismos institucionais que deviam regular, de forma sistemática, esta área - e isto tende a piorar quanto mais a nossa economia se torna de 'serviços' e menos 'industrial').
(quanto à transmissão intergeracional da desigualdade de oportunidades, medida em função do peso do background social na entrada para o ensino superior a que o João se refere, e a que o Renato aludiu, e bem, aqui - e que não deixa de ser expectável tendo em conta que a sua massificação, comparando com a Europa, é recente/tardia; e aqui há o efeito do fortíssimo abandono escolar a pesar, que é onde se faz verdadeira selecção do sistema ao nível do ensino básico e secundário -, precisávamos se saber a sua evolução ao longo, por exemplo, da última década: o problema melhorou ou piorou? é a evolução do indicador, do ponto de vista das políticas, que é o fundamental)

O problema no texto do João Rodrigues é que eu duvido que um discurso quase-catastrofista nos leve muito longe; o mais provável é continuar a alimentar – e a ser, mesmo que inadvertidamente, cúmplice – (d)o fatalismo nacional do costume.

É que não basta referir a dimensão e relevância do problema da desigualdade e da pobreza – tão ou mais importante é mostrar que há, fruto de instrumentos políticos colocados em prática, algumas melhorias que não podemos e não devemos esquecer. Assim, o João refere que «em todos os indicadores pertinentes sobre pobreza e desigualdade, Portugal ocupa posições cimeiras nas tabelas da OCDE e da EU», mas não refere que o risco de pobreza global foi reduzido em 5 pontos percentuais em dez anos: de 23% em 1995 para 18% em 2004, o que corresponde a uma redução de 22% (= 500 mil pessoas); refere que «Portugal é um dos oito países da União Europeia onde se registam níveis mais elevados de pobreza nas crianças» (palavras da UNICEF), mas não refere que a pobreza infantil diminuiu de 26% em 1995 para 23% em 2004, uma descida de 3 pontos percentuais que corresponde a uma redução de 11,5%; refere que «desigualdade de rendimentos sobe entre a população idosa», mas não refere que o risco de pobreza dos idosos diminuiu de 38% em 1995 para 29% em 2004, e que segundo dados recentes estava em 26% em 2006, o que representa uma redução de 1/3 numa década, perante um passivo histórico sem nenhuma comparação com os nossos congéneres europeus (como se vê, esquecermos o passado dá imagens pouco lúcidas do presente).

Convém também não esquecer que boa parte deste período foi de lento crescimento económico (desde 2000), algo que torna mais difícil uma luta mais agressiva contra a pobreza e as desigualdades. Ao mesmo tempo, é preciso perceber o que se passou de 2005-2006 para cá. Por um lado, medir o impacto distributivo do considerável aumento do desemprego; por outro lado, o impacto das novas medidas de apoio aos idosos – em particular o Complemento Solidário para Idosos -, de apoio à família – os sucessivos aumentos do abono de família -, e aos trabalhadores – o salário mínimo. Estranharia – mais: seria contra o que sabemos do efeito de medidas políticas deste tipo - que estas medidas não tivessem um impacto redistributivo importante.

A questão, claro, é sempre: Isto chega? Não, não chega: é preciso fazer melhor, muito melhor. O problema é que é tudo muito lento, e se há avanços que não devem ser negligenciados – que 500 mil pessoas a menos abaixo da linha do risco de pobreza não é algo de somenos -, outros indicadores permanecem semi-congelados, enquanto outros mostram uma regressão (em particular, a nível salarial) que, mesmo que expectável, é uma regressão.

Mas o que também não chega é pintar um cenário em que nada parece ter mudado (ou, antes, que os únicos indicadores de mudança são negativos). É que, convém não esquecer, Portugal já gasta cerca de ¼ da riqueza nacional em políticas sociais. Queremos mesmo argumentar que isto não serve de (quase) nada?

Ora, não é assim que se constroem coligações. E sem coligações – em democracia é assim - não há políticas robustas e agressivas. E se há uma coisa que precisamos nesta área, é de robustez e agressividade. Pela enésima vez, e dado o pessimismo antropológico dos portugueses face aos problemas da pobreza, não nos enganemos no argumentário.

Em caso contrário, continuaremos encalhados naquilo que podemos chamar, muito apropriadamente, um “capitalismo de herdeiros”.

2 comentários:

CLeone disse...

Bem achada, e muito adequada a Portugal, essa do capitalismo de herdeiros. Vejo que estás cansado, d enovo, de discussões em que há quem se «esqueça» (belo eufemismo)sistematicamene daquilo que não lhe convém para poder desprezar não só as políticas sociais mas a democracia (esquecem, ou mudam de critérios livremente, o efeito é o mesmo...). Terminas muito bem, assim não há coligação. Mas continuo à espera da tua estratégia para a coligação. Nem que seja no veu2, os posts sobre a recente desregulação do tempo de trabalho (e de lazer) pela UE também são bom pretexto para isso.

Hugo Mendes disse...

Olá Carlos, talvez explore as questões da estratégia entre este espaço - que é afinal de contas mais de análise - e o Véu2.
A coligação tem de ser feita com a opiniao publica, com os parceiros sociais nesta área, e com a elites economicas. E, claro, depende da vontade de cada um dos interlocutores - tanto à esquerda como à direita, aliás - em participar dela.