quinta-feira, 19 de junho de 2008

Globalização, Estado social e desigualdades

A globalização é um risco ou favorece o Estado social? Devemos resistir ou olhá-la de frente?
Todos já ouvimos a ideia de que globalização leva ao aumento das desigualdades e ao desmantelamento dos Estados sociais. Felizmente, quase tudo o que sabemos do processo de construção histórica dos sistemas de protecção social mais generosos do mundo prova que esta ideia é errada.

Assim, é um dado adquirido que, historicamente, as economias mais integradas no comércio internacional são as de países pequenos (Suécia, Noruega, Finlândia, Áustria, Holanda ou Bélgica) que construíram sistemas de protecção mais generosos. São casos em que os países retiram força da sua posição de fraqueza: o seu pequeno mercado interno torna-as vulneráveis aos choques externos. Ora, é precisamente esta vulnerabilidade que serve de incentivo à coordenação de actores diferentes - governo, capital, trabalho - no sentido de cooperar, construindo instituições e desenhando estratégias que sirvam a todos, evitando que essa vulnerabilidade se transforme em instabilidade económica. Por outras palavras, a vulnerabilidade económica favorece os compromissos de classe e a criação de um 'bem público' que é a segurança colectiva contra os choques exógenos. Esta é, portanto, uma estratégia de compensação, onde se troca a integração na economia internacional - com a crescente vulnerabilidade que isto traz - pela construção de dispositivos de protecção dos cidadãos. Assim, os países não se integram nas dinâmicas do comércio internacional apesar do Estado social - elas integram-se precisamente porque ele existe, ao mesmo tempo que essa integração favorece a expansão deste. Estado social e globalização das trocas evoluem de mão dada. Este livro mostra a força empírica desta hipótese. Mais à mão, também se pode ler o que escrevi aqui.

Inversamente, a actual globalização traz mais problemas aos países que historicamente dependeram menos do comércio internacional - seja porque tinham mercados internos grandes (EUA ou Reino Unido), sejam porque apostaram no proteccionismo (Austrália) -, e que, por terem estimulado a competição interna mais através da desregulação do mercado laboral assente em altos níveis de mão-de-obra desqualificada do que pelo desenvolvimento de uma produção industrial de qualidade que uma mão-de-obra qualificada permite, sofrem mais directamente a concorrência dos países do Sul quando a globalização comercial se intensifica.



E Portugal? Portugal, infelizmente, comporta-se como se fosse uma França ou uma Alemanha e tivesse um mercado interno gigantesco. Veja-se a figura: Portugal devia estar junto das outras economias de pequena dimensão, que enriqueceram pela via da exportação de produtos especializados e de qualidade. São também os países onde as desigualdades são mais reduzidas, e o Estado social mais generoso na protecção dos riscos e na 'propulsão', para usar a muito feliz expressão do Renato, das capacidades dos cidadãos/trabalhadores. Onde uma grande fatia da população tem altas qualificações. E onde a globalização comercial foi desde sempre vista como uma oportunidade, e não como um 'monstro' (como é visto o mercado interno europeu, noutra versão da globalização, esta mais 'regionalista') de que era preciso fugir (porque será que os movimentos anti-globalização são muito mais fortes numa França ou numa Alemanha do que numa Dinamarca ou numa Suécia?...).

Quem resistiu, foi perdendo o comboio da aprendizagem que só a participação em mercados competitivos - isto é, internacionais - confere. Foi vivendo de pequenos balões de oxigénio e proteccionismos que não duram sempre. E um dia acorda e vê que a China inundou os mercados internacionais com produtos mais baratos. O problema, claro, é que quem resistiu não devia, nesta altura do campeonato, estar a concorrer com a China.

3 comentários:

Pedro Viana disse...

"Assim, os países não se integram nas dinâmicas do comércio internacional apesar do Estado social - elas integram-se precisamente porque ele existe, ao mesmo tempo que essa integração favorece a expansão deste. Estado social e globalização das trocas evoluem de mão dada."

Se tal é verdade, dê-me o Hugo exemplos na Europa de países que reforçaram o Estado Social nos últimos 20 anos. Eu posso indicar-lhe alguns, mas não são bem aqueles que apoiam a sua tese: Portugal, Espanha e Grécia. Por exemplo, a Suécia diminui fortemente a despesa pública, passando de mais de 60 % do PIB para os actuais pouco mais de 50%. Pelo contrário, Portugal aumentou fortemente a sua despesa pública em percentagem do PIB nos últimos 20 anos. E não foi por via de qualquer consenso sobre o melhor modo de adaptação ao processo de globalização. Foi sim por pressão da população, que exigiu mais e melhor Estado.

Hugo Mendes disse...

Pedro,

"Se tal é verdade, dê-me o Hugo exemplos na Europa de países que reforçaram o Estado Social nos últimos 20 anos. Eu posso indicar-lhe alguns, mas não são bem aqueles que apoiam a sua tese: Portugal, Espanha e Grécia."

Isto confirma a tese. Há 20 anos os países estavam ainda menos integrados na economia internacional, e tinham acabado de entrar na UE (processo que levou a uma internacionalização da economia, naturalmente). Há precisamente um capítulo do livro inglês que linkei que é sobre Portugal e Espanha, com estudos de caso que suportam fortemente a tese.

"E não foi por via de qualquer consenso sobre o melhor modo de adaptação ao processo de globalização. Foi sim por pressão da população, que exigiu mais e melhor Estado."

2) Também. A globalização é uma das variáveis, não explica tudo; o processo é sempre intermediado pelos reivindicações políticas internas, desde que exista democracia (sem democracia os gastos sociais continuam mínimos, como aconteceu com a Coreia do Sul durante a ditadura até 1987). Mas Portugal é também hoje uma economia mais aberta internacionalmente do que há 20 ou 30 anos. O crescimento da protecção social acompanhou este processo.

"Por exemplo, a Suécia diminui fortemente a despesa pública, passando de mais de 60 % do PIB para os actuais pouco mais de 50%."

Sim, mas com duas ressalvas centrais:
1) o Estado social sueco cresceu desde os anos 30 precisamente pela integração precoce da Suécia na economia internacional. É também um dos exemplos que, classicamente, demonstra a tese do ponto de vista histórico. Agora, existe um 'tecto', naturalmente. As despesas do Estado não podem continuar a crescer sem fim: o objectivo do Estado social não é a socialização da economia; a social-democracia não pretende ser o socialismo. A Suécia desceu a despesa pública porque entrou num crise agudíssima em 1991-2, e alguma coisa tinha de ser feito. E a pressão da população fez eleger um governo conservador para mudar as coisas (embora grande parte das reformas tenham sido levadas a cabo pelo governo social-democrata seguinte).
2) Apesar dos cortes - ou melhor: talvez precisamente por causa deles -, mais de 50% dos gastos do Estado sueco (como na maioria dos Estados sociais maduros) destina-se a despesas sociais. Ou seja, gastando menos no global do que há 15 anos, a Suécia gasta mais do na área social do que no passado, o que corresponde a uma reorientação e redefinição das prioridades de investimento público.

Hugo

Pedro Viana disse...

"Mas Portugal é também hoje uma economia mais aberta internacionalmente do que há 20 ou 30 anos. O crescimento da protecção social acompanhou este processo."

Hugo, o argumento exposto no post era o de que a internacionalização da economia dum país favorecia o aparecimento dum consenso sobre a necessidade dum Estado social, e que foi por isso que ele foi cruado nos paises mencionados, Ou seja que há uma relação causal. E não apenas um crescimento paralelo do impacto da globalização e do Estado Social num dado país, Em Portugal, parece-me que o crescimento do Estado Social não se deveu de modo algum devido à crescente internacionalização da economia portuguesa. Nunca houve qualquer consenso em Portugal sobre quais medidas sociais são necessárias para diminuir o impacto da globalização. À posteriori por vezes aparece uma forma de consenso, como o caso do Rendimento Mínimo. Por exemplo, que medidas os diferentes actores à Direita propôem hoje para reforçar o Estado Social em Portugal? Nada. Zero. Portugal é um claro contra-exemplo sobre o pressuposto da "lucidez" de parte das elites de Direita. E não me venha dizer que é culpa é da radicalidade dos sindicatos e da Esquerda. A Direita nunca foi capaz de dizer: nós concordamos em reforçar o Estado Social, pagando mais impostos, nestes aspectos se vocês concordarem em alterar por exemplo a legislação laboral. Pelo contrário, passa a vida a agitar o papão da globalização para exigir sem nada dar em troca.

Em conclusão, a sua tese até poderá ter algum fundo de verdade nas sociedades onde culturalmente o consenso e a humildade são valorizadas. Não é válida noutras sociedades, como o caso da portuguesa.