terça-feira, 24 de junho de 2008

O discurso do "facilitismo", ou o ataque ideológico à escola pública

O ataque aos sistemas públicos de saúde e educação tendencialmente universais e gratuitos (sim, eles são pagos, mas suportados diferencialmente por quem mais rendimentos aufere, logo, são serviços que resultam da redistribuição) é o primeiro passo no caminho para criar na opinião pública a ideia da necessidade do seu desmantelamento e da sua privatização.
Nos últimos tempos, temos assistido a uma campanha contra o serviço público de educação por parte de muitos meios de comunicação e comentadores sem o conhecimento mínimo da realidade sobre a qual discursam. O discurso do "facilitismo" do ensino público é uma estratégia óbvia para retirar a confiança das classes médias no sector, e dar a ideia que só o privado é que é de qualidade.
O 'facilitismo' tem sido avançado como problemático na matemática. Eu já tinha feito este exercício há vários meses, mas dado o calor - e a demagogia - da discussão actual, vale a pena recordar os dados do PISA 2006, que permite avaliar o nível de literacia matemática dos alunos portugueses num contexto internacional (quadro retirado deste relatório).



Vale a pena olhar com atenção. O nosso resultado global, é verdade, é fraco: 466 (linha verde), comparado com a média estandardizada de 500 (linha vermelha) para os 57 países que participaram no estudo. Mas olhemos uma segunda vez, tendo em conta este dado: o PISA é aplicado a estudantes de 15 anos independentemente do ano de escolaridade que frequentam (15 anos é a idade escolhida por ser a que corresponde na maioria dos países ao final da escolaridade obrigatória). Portugal é o único país da Europa com tantos alunos inscritos em tão diferentes anos de escolaridade (ver as várias 'bolas'), ou seja, com tantos alunos em atraso, resultado das sucessivas retenções de que foram alvo.

Os alunos que, com 15 anos, estão no ano de escolaridade 'certo' (ano modal) - que em Portugal é o 10.º ano - têm, afinal, um bom (para não me exceder nos adjectivos) resultado: 520. Este resultado seria impossível se o ensino da matemática estivesse a ser assaltado por um qualquer 'nivelamento por baixo'. Assim, o real problema é a diferença entre o aluno médio do ano modal e o aluno médio: comparado com outros alunos, Portugal tem uma percentagem excessiva de alunos fracos ou muito fracos, para os quais o sistema não encontra resposta (a diferença entre o aluno modal e o aluno médio é de 54 pontos(!) - isto é, 520 menos 466 -, sem comparação com o que sucede com qualquer outro país). São estes os alunos nos quais temos que pensar, seja a nossa preocupação a equidade ou a eficácia, e são eles que, tendo ficado para trás - é duvidoso que um aluno no 7.º ou no 8.º ano perceba sequer muitas das perguntas que lhe são colocadas no teste do PISA, por isso não são de espantar os resultados medíocres obtidos - exigem soluções pedagógicas extraordinárias.

Isto não significa dizer que não existe qualquer problema no desempenho dos alunos portugueses a matemática. Existe. Mas o problema não é o 'nivelamento por baixo'. O resultado médio do nosso 'aluno modal', ou seja, que não perdeu nenhum ano no seu percurso escolar, é um bom resultado (520). O verdadeiro problema é antes a dualização entre os alunos que estão onde deviam estar e os "outros", para os quais não houve nenhuma estratégia alternativa senão, claro está, retê-los. Retê-los uma, duas, três vezes. Os alunos que estão no 7.º e no 8.º ano de escolaridade, ou seja, que foram retidos 3 e 2 vezes são, respectivamente, 6,6% e 13,1% da amostra do PISA (que é uma amostra aleatória estratificada do nosso sistema), o que perfaz 19,7% de alunos muito atrasados (isto é, 1 em cada 5). Nenhum outro país europeu se aproxima deste valor (o mais próximo, quase residual, é de 7,1% em Espanha).

O nosso problema, repito, não é ausência de alunos de boa qualidade. Nem é sequer o facto do nosso sistema não ser selectivo. É, antes, muito selectivo - no sentido em que separa os alunos, deixando uma grande fatia deles para trás.

O nosso problema está, para usar a esclarecedora expressão usada pelo representante da persecutória Sociedade Portuguesa de Matemática ontem num programa da SICNotícias, os alunos "mais fraquinhos" (expressão seguida de risadas adolescentes - que serviram de inequívoco marcador ideológico). O problema é sempre este: enquanto estivermos obcecados com a produção de uma 'minoria de excelência' e não procurarmos estratégias centradas na resolução dos problemas dos alunos "fraquinhos", eles vão continuar sempre a existir (por desatenção político-pedagógica cristalizada nas práticas, e não por qualquer 'efeito da natureza'). E a retenção, enquanto estratégia pedagógica, nada pode contra este problema*.

*Esta não é uma opinião caída do céu. Só para dar um pequeníssimo exemplo, em 2001, num artigo que recenseava os estudos feitos sobre os efeitos pedagógicos da prática da retenção ao longo do tempo em diferentes sistemas de ensino, concluía que «over 50 years of educational research has failed to support any form of grade retention as an effective intervention for low achievement», in Dalton, M., P. Ferguson and S. Jimerson (2001), “Sorting out of Successful Failures: Exploratory Analyses of Factors Associated with Academic and Behavioural Outcomes of Retained Students”, Psychology in the Schools, Vol. 38(4).

Adenda: este post suscitou uma discussão interessante aqui.

10 comentários:

Pedro Viana disse...

Excelente! Hugo, propunha que tranformasse este post num artigo de opinião e o enviasse para jornais como o Público ou o DN. É extremamente importante contrariar a manipulação reinante. Sugeria mencionar explicitamente que Portugal tem o mais alto nível de retenção na Europa, contrariando a ideia feita que em Portugal passam todos. E reforçar a ideia que a retenção é um desastre pedagógico.

MFerrer disse...

É absolutamente indispensável à saúde mental deste país a divulgação deste seu excelente post a que chamo desde já um elemento de reflexão e de trabalho.
Felicito-o pelo esclarecimento.
Nem preciso de dizer que estou completamente de acordo com os seus argumentos.
MFerrer

Anónimo disse...

Excelente! Parabéns! Mande isto para os jornais. O país precisa de gente esclarecida, que lute contra a maré do discurso fácil!

Anónimo disse...

Penso que o post em si enferma de alguns erros:

1. O discurso anti-facilitista não é contra a Escola Pública, é em defesa desta. Não são as pessoas que o proferem que estão a ferir de morte a Escola Pública, mas sim quem decidiu dar ordens ao GAVE para simplificar os exames e os critérios de correcção dos mesmos - e você sabe de que senhora estou a falar... Eu sou professor da Escola Pública e estou revoltado com a palhaçada dos Exames e com a vergonha dos critérios de correcção de que os correctores foram informados verbalmente - há que "espremer tudo até à ultima gota..."

2. Os malabarismos estatísticos nele apresentados poderiam levar à conclusão de que os alunos nunca reprovassem chegavam ao 10º Ano e sabiam o mesmo que os que obtêm excelentes valores nos testes PISA, o que não é verdade. Se não houvesse reprovações, as aulas teriam alunos muito fracos e implicariam baixar o grau de exigência nivelando tudo por baixo. Quem dá aulas a turmas muito heterogéneas sabe que assim é... O resultado final seria o mesmo da actualidade - valores PISA baixos...

3. Eu sou professor público e não acho correcto que se finja defender a Escola Pública de forma desonesta e trapalhona, baixando o grau de dificuldade dos exames, como aconteceu este ano. Não contentes com isso, nos critérios de correcção obrigam os professores a corrigir de forma leviana, inconsequente e mentirosa - é assim que o GAVE e o Ministério da Educação defende a Escola Pública?

4. Se querem defender a Escola Pública, permitam aos professores ensinar em vez de os usarem para alimentar a burocracia do Ministério, com papelada e mais papelada inúteis, para servirem de ama-seca e companheiros de brincadeira às crianças e outras dezenas de coisas a que os docentes são hoje obrigados na Escola Pública.

5. o problema dos "alunos mais fraquinhos" não é a reprovação, que é necessária para separar os bons e excelentes dos outros. É o facto de a estes alunos o Ministério da Educação dar poucas possibilidades: a generalização de cursos tecnológicos é pequena e quando existem não estão devidamente apetrechados, os PIEF's são caros e o Ministério não quer investir o suficiente neles e os currículos alternativos implicam horas para reunião dos docentes que levam a que haja poucos.

E, já agora, leu algum dos exames e comparou com estes com os do ano passado? Já reparou que uma pergunta fácil do teste de 6º Ano de Matemática é quase igual a outra pergunta do ano passado, mas dado no teste do 4º Ano? E que aquela senhora muito simpática da DREN não quer professores que dão notas "distantes da média" a classificar exames? Porque será?

Pedro Luna disse...

Quem ataca a Escola Pública, pois está a descredibilizá-la, é o Ministério da Educação. Primeiro atacou os professores, enxovalhando-os e insultando-os durante 2 anos, a seguir legislou para tornar ingovernável essa mesma Escola Pública. Hoje, para obter resultados estatísticos interessantes, reduziu drasticamente o pede nos exames e facilitou nos critérios de correcção até quase ao nível zero.

Será que tentar nivelar o ensino por baixo beneficia alguém? Os bons são impedidos de atingir o patamar que poderiam atingir - a excelência. Os mais fracos, os com problemas sociais e pessoais, levados pela onda de facilitismo, ainda fazem menos - resultado nulo...

O que fazer então? Reduzir o n.º de alunos das turmas com dificuldades (muito caro - a Ministra não quer...) e criar alternativas úteis e viáveis: CEF's, PIEF's e currículos alternativos (que a Ministra aceita a contragosto, pois implicam mais custos). É necessário ainda preparar com materiais as Escolas para darem formação profissional (CEF's) pois fazer cursos destes só com papel e caneta é capaz de ser pouco...

A bem da verdade este post é uma tentativa de justificar (com fracos resultados...) as causas de se ter efectivamente baixado o nível de exigência nos exames, bem como lutar contra quem invoca esse argumento (o facilitismo da Ministra) com o chavão da defesa da Escola Pública. Eu, que estudei numa Escola Pública de Excelência, não me revejo numa Escola actual em que nada se pede aos alunos e tudo se lhe dá, a troco de nada...

Anónimo disse...

Ainda um post do Blog de especialistas e cientistas De Rerum Natura:


"Exame sem erros, porém erróneos


Recapitulemos a questão mais polémica em torno dos exames nacionais recentemente realizados: políticos, associações científicas, especialistas, professores, encarregados de educação, e até alunos consideram-nos descaradamente acessíveis. A comunicação social interessou-se pelo assunto e deu-lhe destaque. Num debate ocorrido na RTP.N, registei a posição do Director do Gabinete de Avaliação Educacional: peritos indicados pela Sociedade Portuguesa de Matemática (S.P.M.) auditaram as provas de matemática antes da sua aplicação, pelo que as actuais críticas dessa Sociedade ao grau de dificuldade das mesmas são, no mínimo, caricatas. O representante da S.P.M. presente no debate, Filipe Oliveira, sublinhou que erros científicos e grau de dificuldade são coisas distintas. Demonstrou ainda – lendo o ofício enviado pelo Gabinete de Avaliação Educacional (G.A.V.E.) requerendo a peritagem – que aos especialistas da S.P.M. apenas foi solicitado que auditassem o primeiro aspecto.

Concentremo-nos então na seguinte interrogação: será possível que uma prova esteja correcta cientificamente mas apresente um grau de dificuldade errado? Indo mais longe, o grau de dificuldade que se imprime a uma prova de exame pode estar certo ou errado?

De modo propedêutico a este texto, publiquei neste blogue outro, onde afirmei que uma das funções da avaliação das aprendizagens é a função social, cujo fim é classificar como forma de prestar contas da eficácia do sistema de ensino à sociedade e de tomar decisões relativamente aos alunos e/ou ao próprio sistema de ensino. Esta avaliação, com carácter sumativo, tem como principal missão diferenciar os alunos, com base nas suas aquisições académicas.

Ora bem: sem subterfúgios, é preciso reconhecer-se que os exames nacionais que agitam a sociedade portuguesa, estão nesta categoria. Estando nesta categoria, e não noutra, a sua técnica de construção tem de ser consequente.

Trata-se de uma técnica simples que passo a explicar, muito resumidamente.

Sistematizam-se os conteúdos e as competências constantes dos documentos curriculares, tomando em consideração a importância atribuída a uns e a outras. Para tanto, deve usar-se uma tabela de dupla entrada que permite conjugar estes dois aspectos e, assim, determinar com maior precisão o tipo e o número de perguntas mais adequadas para a sua medição.

Posto isto, decide-se o grau de dificuldade das perguntas, de modo a discriminar a aprendizagem dos alunos. Num exame devem, pois, constar perguntas de dificuldade mínima, pouco exigentes do ponto de vista conteúdos/competências, às quais, em princípio, a grande maioria dos alunos responde correctamente, até perguntas de dificuldade superior, muito exigentes do ponto de vista conteúdos/competências, às quais, em princípio, só uma minoria dos alunos responde correctamente. Entre estes dois pólos formulam-se perguntas de dificuldade intermédia.

A ideia é avaliar “o que os alunos aprenderam” (conteúdos), “para que aprenderam” (competências) e a “profundidade com que aprenderam”.

Aceito, como referem diversas entidades do Ministério da Educação, que os especialistas do G.A.V.E, responsáveis pela elaboração os exames nacionais, dominem tal técnica, ainda que, por vezes isso não pareça claro. Há, contudo, um outro aspecto que lhe dá sentido e que na discussão em causa é crucial: como todas as técnicas, também esta é subordinada às opções de quem avalia. Efectivamente, em cada processo de avaliação, é preciso decidir o critério de rigor/diferenciação que se pretende obter. Critério de rigor/diferenciação que se consubstancia na proporção de perguntas de dificuldade mínima, média e superior que se introduz numa prova de exame. E, neste caso, é a Tutela que toma a decisão.

Então, o que devemos questionar, neste passo, é se é ou não um erro tal decisão ter recaído num critério de rigor/diferenciação mínimo; ou, se formos condescendentes, ter contemplado um critério de rigor/diferenciação médio; mas provavelmente ter excluído um critério de rigor/diferenciação superior.

Entendo que sim, que é um erro. E entendo mais: que é um erro muito grave. Poderia aduzir diversas razões para justificar a minha opinião, mas entendo que uma só é bastante por prevalecer em relação a outras: perverteu-se e dissimulou-se o objectivo dos exames nacionais, que é, relembro, distribuir os alunos numa escala pré-convencionada por referência a uma norma (de conteúdos e competências), como forma de perceber quem chegou a que patamares de aprendizagem.

Se, como país, entendermos que isso não interessa, tenhamos a coragem de dispensar este tipo de avaliação. Atitude que, apesar de errada, é menos errada do que aquela a que temos assistido."

Anónimo disse...

É um erro lógico comparar s alunos que estão no décimo ano com uma média de alunos nos vários anos. A comparação devia ser com a médias dos 80% melhores em cada país.

Anónimo disse...

Ao ler este post não posso deixar de pensar, uma vez mais, que ele serve a "quem de direito."
Não passa de branqueamento de uma situação que se está a tornar insustentável no ensino português.
É um perfeito logro e é, sobretudo, revoltante quando tentam atirar areia para os olhos e se dizem defensores da Escola Pública.
Sim, eu sou defensora da escola pública, de qualidade de preferência e como exigência.
Gosto especialmente dos gráficos que conferem uma certa "cientifidade" ao assunto, prestando a algo indefensável, solenidade e seriedade.
Continuem, estão a fazer um excelente trabalho!

MFerrer disse...

ÚLTIMA HORA:
COMUNICADO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
21:00h, 5 de Dezembro de 2008

1 – Chegou hoje ao fim o processo de negociação das medidas tomadas pelo Governo no dia 20 de Novembro para facilitar a avaliação do desempenho dos professores.
2 – Os sindicatos, neste processo, não apresentaram qualquer alternativa ou pedido de negociação suplementar, pelo que o ME dá por concluídas as negociações, prosseguindo a aprovação dos respectivos instrumentos legais.
3 – O ME, mantendo a abertura de sempre, respondeu positivamente à vontade dos sindicatos, expressa publicamente, de realização de uma reunião sem pré-condições, isto é, sem exigência de suspensão da avaliação até aqui colocada pelos sindicatos. Foi por isso agendada uma reunião para o dia 15 de Dezembro, com agenda aberta.
4 – Os sindicatos foram informados que o ME não suspenderá a avaliação de desempenho que prossegue em todas as escolas nos termos em que tem vindo a ser desenvolvida.

Mário Nogueira, dadas as suas declarações nos telejornais d ehoje à noite, é um mentiroso compulsivo e não pode ser um parceiro fiável para nada!
MFerrer

David Cota disse...

Fico triste quando leio alguns destes comentários.
Parece que algumas pessoas, talvez cegas ela "cor que trazem no coração" não vêm "um boi" à frente.
e repetem o velho e gasto discurso.
Não é certamente um caso de opinião diferente! Roça mais a iliteracia!